Surgia assim, um bode expiatório para aids

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6 min readDec 1, 2021

Um dos marcos mais importantes e tristes na história do século XX, a epidemia da aids continua um tema atual

Arte: Magui

No dia 26 de abril de 1989, era lançada a edição Nº 1077 da Revista Veja. Na capa, um dos maiores artistas brasileiros que por aqui já passaram, Agenor de Miranda Araújo Neto, mais conhecido como Cazuza. O que choca é seu estado frágil e debilitado estampado sem cuidado algum da revista com a imagem do artista.

Anos depois, ainda discutimos o desrespeito da mídia desde o início com as primeiras pessoas que contraíram o vírus de uma das doenças mais marcantes da humanidade: a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS).

O recorde de exemplares vendidos em menos de 4 horas da edição, é um exemplo do fascínio da imprensa com pessoas soropositivos, reflexo de uma sociedade que não entendia ainda a doença, e que, por consequência, julgava o grupo social mais afetado por ela, a comunidade LGBTQIA+ da época.

No livro de João Silvério Trevisan, “Devassos no Paraíso”, que descreve a história da homossexualidade no Brasil, o autor cita como foram desenvolvidas as narrativas que traziam a ideia de “proteger-se da epidemia da aids combatendo o vírus da homossexualidade”.

O pânico de uma nova doença letal, que pouco se sabia sobre na época, serviu como ignição para muitos grupos extremistas apoiarem ainda mais seus discursos homofóbicos.

Entendendo a diferença entre HIV e Aids

O que ocorre é que o vírus do HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), incapacita o sistema imunológico de quem contrai, permitindo que outras doenças tenham uma maior predisposição a serem desenvolvidas pelo organismo no paciente. Quando isso acontece, é dito que a pessoa desenvolveu aids.

Contudo, com a medicação correta dos antirretrovirais, a carga do vírus HIV pode chegar a ficar indetectável, ou seja, a pessoa que contraiu o vírus não o transmite mais em relações sexuais, mas para a confirmação disso, é necessário a realização de exames durante seis meses no mínimo.

Anos 80: o descobrimento da doença

Para entendermos mais o mito que foi criado por volta da aids, precisamos entender o contexto que a doença surgiu.

O mundo vinha da chamada “revolução sexual” dos anos 70, a conhecida “era hippie” onde os ideais de liberdade estavam sendo expandidos por todo o mundo ocidental — em alguns países um pouco menos, como o Brasil, que passava por sua ditadura militar.

Arte: Magui

O conceito da época era uma aceitação maior de temas ligados à quebra de tabus e padrões antes instaurados como relações sexuais fora do casamento, familiarização da população com métodos contraceptivos, nudez, legalização do aborto, entre outros fenomênos do período.

Entretanto, uma década mais tarde, viria uma epidemia que mudaria o rumo da recém conquistada liberdade sexual, especialmente de membros da comunidade LGBTQIA+.

Foi registrado em 1981, o primeiro diagnóstico da doença nos Estados Unidos, em grupos de usuários de drogas injetáveis e homens homossexuais, que de repente, se encontraram com a imunidade severamente comprometida.

Assim, teve início um dos períodos de maior enfrentamento contra uma doença que ainda era desconhecida pela ciência.

Sobre esse período, há filmes como “The Rebel Heart”, do diretor americano, Ryan Murphy, que retratam como foi a luta das primeiras pessoas que contraíram o vírus do HIV, ao acesso da medicação correta e do tratamento correto a quem precisava.

Hoje, a pessoa que é diagnosticada com HIV, tem a opção de 41 remédios que podem ser usados para o tratamento da doença.

Infelizmente, demorou 7 anos desde o descobrimento do vírus, para que a primeira droga usada no combate da aids fosse aprovada pela U.S. Food and Drug Administration (FDA), órgão que legisla a indústria farmacêutica dos Estados Unidos.

Nesse período de incerteza, muitos foram infectados sem ao menos terem a disponibilidade do tratamento.

Com o passar dos anos, as dificuldades ao acesso à medicação correta foram diminuindo e, junto com a ciência, estão até hoje sendo aprimorados, desde a base dos coquetéis de remédios às pesquisas atuais na área, a ponto dos cientistas buscarem uma cura para a doença.

Desde então, o tratamento contra o HIV avançou de forma que atualmente, pacientes soropositivos, com a medição correta, podem viver suas vidas de forma saudável, como alguém que não contém o vírus.

Ignorância = Medo

Já no Brasil, o primeiro caso de aids foi registrado em 1980, na cidade de São Paulo, mas seu diagnóstico oficial veio apenas dois anos depois, em 1982.

No início, a doença possuía também o nome de “Doença dos 5H”, o termo temporário veio da repercussão da transmissão do vírus em cinco grupos específicos: Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos, Heroinômanos (usuários de heroína injetável) e Hookers (profissionais do sexo).

O imaginário popular da doença como “vírus gay” repercutia servindo como combustível para uma difamação cada vez maior de um grupo já excluído pela sociedade.

Os primeiros anos da epidemia, entre 1980 a 1986, foram marcados pelo conceito de que a doença era apenas transmissível entre homens homossexuais e bissexuais, com grande parte dos casos vindos dessa parcela.

Desde grandes jornais à próprios médicos — como o médico Aloísio Resende Neves, que sugeriu um projeto de cirurgia peniana que impossibilitava homens infectados pelo HIV de terem relações sexuais com penetração -, o discurso do combate à aids logo se transformou em uma campanha contra o que chamavam de “sodomia”.

Essa ideologia bíblica vinha de grupos extremistas, como conta no livro de João Silvério Trevisan, já citado.

A imagem, já denegrida da homossexualidade, agora relacionado à uma epidemia mundial, foi um banquete aos conservadores que desejavam pregar à restauração da “honra e da família”. Aproveitando para criarem matérias como: “Aids é castigo de Deus, porque bicha é uma raça desgraçada”.

Na segunda fase da doença, entre 1987 e 1981, é notada a mudança no entendimento das pessoas com o estigma da doença em ser exclusivamente transmitida por pessoas homossexuais e/ ou usuários de drogas injetáveis, com o surgimento de casos em mulheres e casais heterossexuais.

Foi diminuindo, aos poucos, a crença de que uma parcela da sociedade estava ilesa e protegida do vírus.

Segundo o Boletim Epidemiológico da Aids, do ano 2000, o avanço no tratamento — como ocorreu nos Estados Unidos — trouxe uma queda significativa nos números dos casos de infectados pelo vírus. Métodos contraceptivos também começaram a ser distribuídos como formas de prevenção à doença.

“A aids é a primeira doença da mídia”

A frase, “A aids é a primeira doença da mídia”, foi retirada do jornal francês Le Figaro, de 1985, e descreve muito bem como foi tratada de forma global e massiva a doença no século passado.

O descobrimento da aids foi visto como uma monstruosidade, algo que necessitava ter um grupo específico como os culpados — vide o título desse texto. Felizmente, anos mais tarde, houve uma mudança no entendimento popular sobre a transmissão do vírus do HIV.

Arte: Magui

O que acaba ainda sendo pouco falado é sobre a vivência de um paciente soropositivo atualmente. Tive a experiência de trabalhar com pacientes que convivem com o vírus há mais de 20 anos, e que se encontram indetectáveis por mais da metade desse tempo, e com eles entendi o quão estamos avançados com o tratamento do HIV.

Procedimentos médicos preventivos como a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição) — indicado antes da exposição sexual, e a PEP (Profilaxia Pós-Exposição) — indicado após a exposição sexual, são novos métodos que surgiram como mais uma saída para o tratamento do HIV.

O avanço é significativo no fim do estigma à aids e precisa ser falado. Ainda existem muitos questionamentos sobre uma doença que surgiu há mais de 40 anos.

O Exagerado

Cazuza faleceu dia 7 de julho de 1990, ao escrever esse texto resolvi assistir a uma entrevista dele concedida à Marília Gabriela em 1988. O artista já se encontrava mais magro e debilitado por conta da doença.

Mesmo com seu corpo frágil, sua mente e suas ideias eram tão vívidas, a ponto de fazerem sentido em nosso contexto atual.

Um artista e um poeta que marcou gerações com suas músicas, suas letras e sua personalidade marcante e única. Deve ser lembrado assim e não por uma capa de revista.

Que lembremos a história, mas a história como ela realmente é.

Escrito por: Izabela Morvan

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