Ventre de quem?

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7 min readAug 30, 2021

Já se perguntou sobre as vivências de mães e pais LGBTQIA+?

Arte: Magui

“Tá pronta pra ter filhos”

Será esse mais um discurso embasado pelo patriarcado? Bom, preciso responder que sim. A família ainda é uma instituição extremamente controlada por um alicerce conservador, que tende a controlar o que deve ser ou não uma família.

A cultura patriarcal nos acompanha desde que começamos a nos configurar como sociedade e, até hoje, muitas pessoas sofrem opressão devido às concepções estabelecidas socialmente. Essa reflexão é importante para pensarmos sobre as vivências de pessoas LGBTQIA+.

Quando vemos um filme, lemos um livro ou nos deparamos com algum relato de uma pessoa LGBTQIA+ tentando criar uma família, parece que é a coisa mais difícil do mundo. Sabe aquele dia que você estava na escola e ninguém te chamou para brincar porque era diferente? Às vezes é esse sentimento. Como se não fosse possível participar de tudo, como se algo nos barrasse.

Se pergunte, quantas vezes você viu uma pessoa LGBTQIA+ constituindo uma família? Qual foi a sua reação?

Perguntas como essas são importantes, pois a resposta delas muitas vezes traz um preconceito que está velado e nem percebemos.

As pessoas são muitas e as vontades são diferentes…

Antes de tudo, temos que lembrar que constituir uma família independe das questões relacionadas à orientação sexual e gênero. Se torna até cansativo repetir várias vezes isso, mas viver em uma sociedade heteronormativa se faz necessário.

Sabe aquele momento que você começa a assistir uma série e quando o último ato termina vem os questionamentos do que irá acontecer? Será que a vida dela vai mudar? Ela vai ter uma vida melhor? O que mais vai acontecer?

Senti isso quando vi pela primeira vez uma personagem. Cassandra é uma mulher trans que teve um breve relacionamento com outra mulher. Depois disso, ambas seguem suas vidas, porém Leide está grávida .

A protagonista não sabe da gravidez e da existência de seu filho, e após 10 anos tudo vem à tona. Cassandra começa a lidar com inúmeras situações que no momento da vida dela são um turbilhão de sentimentos e ações difíceis de compreender.

Essa história é retratada na série “Manhãs de Setembro” original da Amazon Prime Vídeo, em que a história de uma mulher trans, preta e periférica é retratada de maneira majestosa.

Arte: Magui

A série traz em sua narrativa inúmeros problemas sociais que vivenciamos cotidianamente, mas o primeiro foco narrativo é a história de Cassandra vivida por Liniker.

Fiquei pensando muito ao assistir a série sobre a falta de representatividade na discussão sobre maternidade e paternidade LGBTQIA+. São poucas vezes que encontramos matérias em revistas, reportagens em jornais televisivos e pessoas debatendo sobre essa realidade, pois acredite, é uma vivência diferente.

Alô, é o fiscal de maternidade?

Quem se lembra da personagem Carol de Friends? Ela é ex- mulher de um dos protagonistas da série, Ross, em cada episódio em que ela aparece é comum alguém soltar uma piada relacionada a sua orientação sexual e, principalmente, mencionar a questão de seu casamento com sua companheira e o fato dela ser mãe.

Antes de cairmos em um anacronismo ferrenho aqui — e até parecer que não sou uma fã de Friends — a crítica que estou fazendo é sobre o comportamento repetitivo e estereotipado sobre pessoas LGBTQIA+ formando uma família. Aparentemente, não há outra saída para Carol e Susan dentro da série, senão a falsa comicidade repetitiva sobre suas orientações sexuais.

Na vida real, mesmo com os avanços e políticas públicas, ainda existem discursos e práticas que vão além de piadas. Em muitos lugares do mundo, ainda é crime ser LGBTQIA+ e os casamentos entre pessoas do mesmo sexo e gênero são proibidos.

Isso dificulta ainda mais as vivências de pessoas LGBTQIA+ e a possibilidade de constituirem uma família da mesma forma que pessoas cis e heterossexuais.

Adão e Ivo

Além das questões relacionadas às leis de cada local, a influência religiosa ainda é extremamente dificultadora desses processos, analisando o contexto brasileiro em que as bancadas religiosas constituem 16% do governo segundo entrevista de 2017 do Jornal El País.

Se olharmos o dado acima pode parecer um número baixo ou razoável, porém uma pequena porcentagem pode influenciar para qualquer dificuldade em aprovações de leis ligadas ao reconhecimento de famílias LGBTQIA+.

Como disse, a religião é um dos pontos que dificultam ainda mais a liberdade LGBTQIA+ no Brasil e no mundo.

Por ser um país laico, todas as ações jurídicas e legislativas não deveriam se apoiar em discursos religiosos que tentam assumir um poder perante o povo e não reconhecem as diversidades. Somos plurais e cada pessoa possui sua crença.

No Brasil, o casamento homossexual foi legalizado em 2013 e em 1985 Conselho Federal de Psicologia decretou que a homossexualidade não era um desvio sexual. Aqui podemos perceber que muitas coisas vão em baby steps há tempos.

Idealizada em 2013, a ABRAFH — Associação de Brasileira de Famílias Homotransafetivas traz consigo uma rede de apoio para famílias que possuam pelo menos um membre LGBTQIA+, a iniciativa auxilia para que a sociedade civil possa dar passos para práticas de empoderamento LGBTQIA+.

Nera hetero?

Além dos problemas relacionados a formar uma família, pessoas LGBTQIA+ tem uma grande dificuldade de serem aceitas ao descobrirem sua real identidade de gênero e orientação sexual após anos vivendo em uma realidade heteronormativa.

Sabe aquele dia que comentaram no almoço de domingo que um parente se separou porque descobriu que era gay? E comentários foram feitos depois disso? Então, é essa vivência que mais acontece.

Talvez isso aconteça, pois quando falamos em construir família as nossas identidades são muitas vezes esquecidas, acabamos nos separando da função de “mãe” e de “pai”

Antes de qualquer coisa, pais e mães têm suas experiências de vida e anseios como qualquer indivíduo. Fazer uma reflexão sobre algumas atitudes preconceituosas ligadas à resistência para com pessoas LGBTQIA+ auxilia para que essas pessoas tenham suas próprias famílias sem uma conexão à heteronormatividade.

Já escutou que por ser lésbica, gay ou trans você nunca vai ter filhos? Ou se tiver não vai ser da mesma forma? São críticas como essas que nos diminuem mais e fazem parecer que somos peças de um quebra-cabeça que nunca vai se encaixar.

O canal GNT, desde 2015, lançou duas temporadas da série Liberdade de Gênero, em que entrevista pessoas LGBTQIA+ que falam sobre as suas identidades. A cantora e atriz, Liniker, foi uma das pessoas entrevistadas na primeira temporada. Contudo, o foco que eu quero trazer aqui é para a psicanalista Letícia Lanz.

Desde muito nova, Letícia se entendia como errada dentro da sociedade, ela sentia que a liberdade de ser quem era não era respeitada. Após muitos anos casada e com filhos, por uma complicação em sua saúde, Letícia decide ser quem realmente sempre foi, vivendo sua liberdade de gênero.

No episódio, seus filhos e sua esposa destacam sobre como cada um apoiou e aprendeu com Letícia e que as construções heteronormativas não deixariam a família e os laços afetivos morrerem.

Para Letícia, “sair do armário” depois de muitos anos foi um desafio, principalmente, por sua identidade LGBTQIA+. Não era um homem gay, mas sim uma pessoa trans lésbica.

São as águas de Março…

Mesmo com críticas de que a estrutura familiar não será a mesma, há famílias que vão contra tais pré-conceitos. Nesse ano, a atriz Nanda Costa e a percussionista Lan Lahn falaram pela primeira vez sobre a gravidez de Nanda, elas decidiram esconder até o momento em que achassem necessário falar sobre.

Outro exemplo de família LGBTQIA+,é do falecido ator Paulo Gustavo com o médico Thales Bretas. O casal também optou pela inseminação artificial e, sempre expuseram abertamente o sonho que estavam vivendo de formar uma família.

Arte: Magui

No filme Minha Mãe é uma Peça 3, dirigido e estrelado por Paulo Gustavo, uma das cenas finais é o casamento de um dos personagens da narrativa: Juliano (Rodrigo Pandolfo), que se casa com Thiago (Lucas Cordeiro).

Paulo Gustavo em seu papel como Dona Hermínia fala como é necessário que o preconceito acabe que temos que abraçar pessoas LGBTQIA+ que querem realizar seu sonho de formar uma família.

Solta o rajadão…

Esse é o caso de pais e mães LGBTQIA+. Uma sociedade patriarcal e heteronormativa impede todas vivências e identificações que fujam do padrão da norma estabelecidade socialmente.

Comentários como “não será uma família de verdade” “não serão realmente pais” aciona ainda mais uma cultura preconceituosa que controla todo ventre que possa gerar uma vida.

Então, por mais que tenhamos várias ideias para revolucionar a realidade de pessoas LGBTQIA+ no ambiente da família, a melhor prática e mais eficaz continua sendo a de rever atitudes básicas que temos cotidianamente relacionadas à heteronormatividade familiar.

Escrito por: Giulia Pietra

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