A guerra pode acabar?

Victor Allenspach
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6 min readApr 26, 2023
Photo by Levi Meir Clancy

Um fenômeno curioso tem sido reportado em todo o mundo após os ataques recentes a creches e escolas. Preocupadas com a própria segurança, crianças têm levado em suas lancheiras armas brancas, como facas de cozinha e canivetes. Essas crianças provavelmente não têm a intenção de atacar ninguém, mas elas sentem que precisam estar preparadas para o pior. Elas estão com medo e o medo não é o mais sábio conselheiro.

Se o seu filho tem direito de levar uma faca para a escola, o meu também tem. Em poucos dias uma decisão unilateral pode se perpetuar por todo o colégio. As brigas por futebol, ou simplesmente por ego, que antes resultavam em uma marca roxa e algumas gotas de sangue, agora podem se tornar verdadeiras tragédias.

O mesmo raciocínio pode ser extrapolado para pais de família que guardam armas em casa, a policiais que precisam de caveirões para enfrentar o tráfico e, finalmente, dentro do contexto mais absurdo e irracional, em governos que decidem armar seus exércitos com o que o mercado tem de mais moderno e estupidamente mortal.

O exemplo mais recente é o da Alemanha, e praticamente qualquer outro país europeu que investiu pesadas somas em seus exércitos em 2022. Cada dia que passa, a guerra na Ucrânia prova mais uma vez ao mundo que as guerras não fazem o menor sentido, o que ao invés de se traduzir em menos orçamento para os militares, resulta em investimentos maciços e até desproporcionais na Defesa.

Eu gostaria de dizer que Lula está errado em sua fala polêmica, mas não sinto que esteja. A Ucrânia está servindo de palco para mais um conflito entre EUA e Rússia. Mais um conflito que ocorre fora dos territórios dos dois países e que é incentivado por lobistas da indústria armamentista, que fazem da Ucrânia um grande estande de vendas. Nada de novo no front.

Mesmo países pobres, que não possuem qualquer previsão de entrar em guerra e que vivem cercados de vizinhos pacíficos e pouco militarizados, possuem orçamentos impressionantes para os seus exércitos. O Brasil é talvez um dos exemplos mais imbecilizantes, com um investimento em 2023 maior para a Defesa do que para a saúde e a educação somados. Sim, somados. Imagine como poderia ser a saúde e a educação no Brasil se não estivéssemos queimando dinheiro para manter caças Gripen, tanques fumacê, pensões de filhas de militares e jantares finos?

Literalmente o Brasil perde todos os dias a chance de ser uma referência mundial em saúde, educação e até mesmo em pesquisa, porque escolhe investir bilhões na indústria armamentista e em altas patentes militares que, felizmente, nunca participaram de uma guerra.

Hoje é um privilégio estudar em uma escola em que nunca ocorreu um ataque. Da mesma forma, é um privilégio incalculável que o Brasil não tenha um único vizinho para temer. Há quem diga que a Venezuela seja um perigo, mas eu acho que a Venezuela já está fazendo um ótimo trabalho destruindo a si mesma. Ela não precisa se arriscar a invadir uma nação com um PIB 3 vezes maior que o seu e repetir a experiência latino-americana com as Malvinas, digo, Falkland Islands.

Com tamanho privilégio, que provavelmente pode ser estendido para quase toda a América, mas dificilmente para qualquer outro lugar do mundo, o Brasil deveria urgentemente reduzir o orçamento dos militares, sucatear seus caças e investir em áreas que realmente importam. O mundo inteiro gostaria disso, principalmente nações imperialistas como os EUA, que detestam o poderio militar de qualquer outra nação além da sua.

Isso não significa que o mundo deva se ajoelhar às vontades de nações imperialistas. Pelo contrário, vejo como um ponto positivo a oposição chinesa ao poderio dos EUA. Perigoso, mas positivo. Mas quem disse que o poderio militar dos EUA já não é perigoso por si mesmo?

Fato é que o Brasil e seus investimentos militares são irrelevantes em um mundo que tem China e EUA. Entrar nesse braço de ferro não é apenas improdutivo, mas caro e patético.

É o fim dos militares?

A Defesa é uma das instituições mais sólidas de nossos tempos, o que significa que ela está enraizada no governo e na sociedade, com relevante papel cultural e histórico. Mesmo que em um período rápido de vinte anos a opinião pública se volte contra os militares, ainda seriam necessárias gerações para que a sua influência e força diminuíssem. Isso talvez signifique que os militares jamais terão fim.

Esse é um cenário bastante amargo, pois enquanto houver militares, viveremos não apenas tementes ao “inimigo externo”, como também alimentando o “inimigo externo” dos outros. Porque sim, os nossos exércitos são o inimigo potencial de qualquer outra nação, assim como todos os exércitos são para o nosso e como toda criança armada na escola é para o seu filho.

A maior resistência contra o fim do exército virá, é claro, do próprio exército. Não diferente dos taxistas diante dos motoristas de aplicativo ou dos artistas diante da inteligência artificial, os militares são uma classe trabalhadora que vai defender o seu ganha pão até o último momento.

Os militares sempre defenderão que, se estamos em guerra, eles são indispensáveis para lutar por nós, e se estamos em paz, eles são indispensáveis para mantê-la. Um raciocínio vicioso.

Talvez haja uma saída. Um cenário em que podemos sonhar com o fim dos caríssimos tanques, porta aviões, satélites e salários do alto comando. Ao invés de enfrentar os militares e exigir que desistam de seus empregos e carreiras (colocando nesses termos, fica óbvio o absurdo da proposta), talvez faça mais sentido uma mudança de paradigma. Não mais enfrentar os militares, mas atribuir novas funções à Defesa. Encontrar meios de os militares contribuírem para a sociedade, quase como uma força acessória do executivo.

De certa forma, isso já ocorre. Pense em quantos militares passam suas vidas pintando guias de calçadas, servindo ao alto escalão como se fossem seus criados ou transportando políticos (e, porque não, drogas) como se os jatos militares pertencessem a uma companhia aérea financiada por troca de favores. É claro que também existem exemplos menos constrangedores da participação dos militares na sociedade, como a construção de rodovias, ou mesmo os navios que levam saúde para comunidades ribeirinhas na Amazônia.

Se vamos sonhar com os pés no chão, então me permitam sonhar com militares que prestam um papel importante para a sociedade. Ao invés de aprenderem a atirar, se camuflar, pilotar tanques e a contrabandear armamentos e munições, podem se tornar engenheiros, agentes de saúde, professores (melhor não) e socorristas. Funções que de certa forma o exército já cumpre, ainda que em uma parcela muito pequena do seu contingente.

Os militares tem hospitais. Hospitais exclusivos para uso dos militares, é claro. Não seria maravilhoso devolver esses hospitais para a sociedade que os financia (no Brasil, entregá-los para o SUS) e por um fim a esse desrespeitoso privilégio que é ter um plano de saúde exclusivo e financiado por um estado pobre e que é incapaz de oferecer acesso suficiente à saúde para toda a população?

Os militares tem uma justiça própria. Poupo o leitor de mais um parágrafo desse textão e deixo um vídeo que resume melhor do que eu poderia os motivos porque a justiça militar sequer deveria existir:

Eu não desejo um futuro para os militares, é claro, mas uma sobrevida. Uma sobrevida com muito mais dignidade do que eles têm demonstrado.

Eu já falei sobre os militares em:

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