Distribuir para reconquistar

Victor Allenspach
vallenspach_pt
Published in
4 min readJul 27, 2020
Photo by Sean Pollock

Compramos porque é barato e não porque a indústria é ecologicamente correta ou porque paga seus impostos e oferece bons salários. Compramos o que o dinheiro permite, porque, muito mais importante do que ser consciente, é fazer um pequeno salário durar o mês inteiro. Vestir os filhos é mais urgente do que se preocupar com um funcionário desconhecido, de uma fábrica do outro lado do mundo e que sequer fala o seu idioma ou sabe que você existe, mas que costura camisetas baratas.

Os rios e lagos são tão importantes para o nosso bem-estar quanto estão distantes do dia a dia da maioria das pessoas. Não pensar em ecologia é o suficiente para se abster, e essa é a melhor solução para a maioria das pessoas que já têm problemas demais. Assim a Amazônia queima pelas mãos de uma indústria que não traz o desenvolvimento que seus defensores pregam, enriquecendo poucos em troca do desgaste ambiental que prejudica a todos, até mesmo o funcionário desconhecido, do outro lado do planeta.

A indústria comete seus crimes, mas os culpados serão sempre os consumidores, que também são as vítimas. Um ciclo infeliz que perpetua a devastação em troca da pouca qualidade de vida que os mais pobres conquistam com muito suor, e que não estão dispostos a abrir mão. Ainda bem.

Os ricos culpam seus antepassados escravagistas, ao mesmo tempo em que se esbaldam em suas heranças. A indústria culpa os governos pelos altos impostos que desaceleram o crescimento, ao mesmo tempo em que devem bilhões aos cofres públicos. Os consumidores repudiam a corrupção que destrói a nação, ao mesmo tempo em que sonegam. O problema de apontar um culpado é se eximir do problema.

Recentemente eu falei sobre isso de outra perspectiva:

Ao se eximir do problema, transferimos as soluções para quem está disposto a vendê-las pelo melhor preço. Como Jeff Bezos (CEO da Amazon) que enriqueceu 13 bilhões de dólares em um único dia, totalizando 189 bilhões de dólares ou 1 trilhão de reais. Se distribuíssemos a sua fortuna entre 2 milhões de pessoas (1% da população brasileira), cada um receberia 500 mil reais, o que é muito mais do que a maioria das pessoas consegue conquistar em toda a vida. Se cada um dos 840 mil funcionários da Amazon fosse dono de uma parte igual da empresa, todos seriam milionários (em 2019 a Amazon foi avaliada em U$$ 916,1 bilhões). Esse é o preço de vender as soluções.

Pessoas como Jeff Bezos determinam quais serão as escolhas que os consumidores terão acesso e se apressam em monopolizá-las. Sem produzir nada, a Amazon nasceu como uma facilitadora bem sucedida através da venda de livros online. Hoje é um colosso com controle sobre uma parcela importante da cultura, além de coletar dados valiosos do mundo todo.

Seguindo seus passos, a Ifood no Brasil, sem preparar uma pizza ou realizar uma entrega, já vale um bilhão de dolares, encarecendo um serviço que poderia ser perfeitamente prestado por uma cooperativa. Ela monopoliza as decisões da sociedade e concentra os lucros ao invés de distribuí-los de forma adequada entre os entregadores, que sequer são considerados funcionários e, portanto, não possuem direitos trabalhistas.

Foram soluções convenientes como essas que encheram nossos oceanos de plástico, patrocinaram guerras, estimularam a concentração de renda e precarizaram o trabalho. Todos os dias a humanidade avança em ciência e tecnologia, cria novos nichos e formas de fazer negócios, sem que a grande maioria seja beneficiada.

Steve Jobs, e até mesmo Elon Musk, nos convenceram de que precisamos de um visionário para tornar os grandes feitos reais e mudar a sociedade (além de influenciar perigosamente na política). Talvez eles tenham razão, o que não significa que em contrapartida esses cérebros criativos precisem ser recompensados com fortunas extravagantes e luxos incalculáveis. Mais do que isso, a visão inovadora que alegam ter, não deveria excluir a sociedade das grandes decisões, o que apenas alimenta poderes paralelos ao Estado (como os bancos), distantes do controle e da supervisão das pessoas comuns.

Cabe à sociedade recuperar as rédeas sobre como essas mudanças afetam a política, ecologia e sociedade, impedindo que alguns poucos determinem o futuro do mundo, livres das consequências de seus atos. Democracia, transparência, impostos sobre grandes fortunas, salários mínimos e máximos, são alguns dos caminhos para a sociedade assumir o controle e voltar a lidar com seus problemas, ao invés de terceirizá-los por soluções caras e convenientes para os patrimônios pessoais de seus criadores. O mundo precisa menos de poderosas corporações e gurus e mais de cooperativas e micro investidores. O momento é de distribuir para reconquistar.

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