Estou fazendo a minha parte

Victor Allenspach
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Published in
5 min readSep 22, 2020
Photo by Museums Victoria

A vida passa como um furacão, com pontuais momentos de alegria e tristeza, que se destacam em um oceano de rotina entediante. Sem correr muito risco, evitamos conflitos e abraçamos o conforto de escolhas que são socialmente aceitas, o que pode deixar a vida um pouco monótona, mas aumenta a chance de chegar bem à aposentadoria. Talvez esse seja o único propósito da maioria das pessoas, uma boa aposentadoria.

Ao contrário de uma carreira e da universidade que sonhamos, os amigos que gostaríamos de ter e os lugares que faríamos de tudo para conhecer, vivemos sufocados por empregos que pagam as contas. Isso porque, na verdade, não estamos realmente dispostos a “fazer de tudo”. Pelo menos, nada que seja arriscado.

Um emprego que paga as contas é justamente o que nos impede de seguir em frente e tentar coisas novas. Ele não é o que desejamos, mas é seguro, talvez garantido e confortável. Acima de tudo, um emprego sempre vem carregado do sentimento de que estamos fazendo a nossa parte. Porque é isso que a sociedade espera de nós, que não sejamos desocupados, um custo para o coletivo.

Por mais medíocre que seja o trabalho em uma linha de produção, escritório ou balcão de uma loja, você está fazendo a sua parte, porque está ganhando dinheiro. Continuar com esse emprego é a decisão mais confortável e socialmente aceita, quase como casar com a primeira pessoa que sorri de volta, por medo de nunca ter um álbum de fotos do altar.

Viver custa dinheiro, e qualquer decisão que não envolva ganhá-lo, é arriscada. Principalmente quando se trata de uma família de baixa renda, sem bens e heranças. O que também explica porque os ricos têm chances maiores de alcançar uma profissão onde se sentem realizados.

Ricos não tem o peso das contas para pagar, mas isso não significa que estejam livres de contribuir com a sociedade. É por isso que herdeiros de fortunas se autodenominam empresários ou investidores, mesmo que a única ocupação que possuem seja comprar, vender ou fazer investimentos com a ajuda de profissionais capacitados. Consideram-se socialites, filantropos ou protetores dos animais, mas nunca, desocupados. Em comum, profissões que não tem patrões, exigência de horários e nem mesmo a necessidade de serem realmente lucrativas.

Para os demais, contanto que tenham um emprego, não é preciso correr atrás de objetivos maiores. Com um emprego já estamos fazendo a nossa parte e não faz sentido se arriscar e se esforçar para conquistar uma incerta realização profissional. Na verdade, aqueles que se arriscam assim, são vistos como irresponsáveis. São aqueles que abrem mão de tudo o que é certo pela chance de ter uma pequena empresa, ou pior, de seguir uma carreira artística.

Para a sociedade, os objetivos pessoais importam desde que você seja financeiramente bem sucedido. Então você se torna uma exceção à regra, aquele que conseguiu alcançar o seu sonho e ainda atender a demanda da sociedade. Até ser bem sucedido, você era um mal exemplo, porque levava uma vida boêmia, se apresentando em bares por trocados ou passando os dias pintando quadros. Do momento em que você é reconhecido, e talvez conquiste alguma fama, a sociedade supervaloriza o seu esforço e o transforma em um herói. Um exemplo de que é possível, ainda que não recomendado. Afinal, se você conseguiu, é porque se trata de um gênio. É porque o seu esforço está acima da média e a maioria jamais conseguiria de toda forma.

Talvez você realmente seja um gênio ou tenha se esforçado mais do que a média, mas isso não deveria fazer de você um exemplo. Pelo contrário, se o único caminho para o sucesso pessoal depende de genialidade ou de dedicação sobre-humana, então o erro não está naqueles que são incapazes de atingir essa exigência, mas na sociedade que a faz necessária.

A sociedade discrimina a realização pessoal, como uma forma de salvaguardar aqueles que nunca terão conquistas. Assim todos podem contar com um prêmio de consolação por serem obedientes e não roubar muita atenção para si mesmos, certos de que correr riscos não é bom para o coletivo. Assim, subvertemos a concepção de sucesso e simplificamos a realização pessoal para algo que todos podem alcançar, inclusive aqueles que passarão a vida inteira em um emprego que paga as contas: o dinheiro.

Imóveis, carros, viagens e tudo mais que o dinheiro pode comprar, se tornaram os símbolos do sucesso pessoal. Pouco importa se você estuda, descobre, desenvolve habilidades ou se esforça para construir e projetar coisas novas. Até mesmo quem tem sucesso em suas buscas pessoais, não é valorizado se isso não se refletir em conquistas financeiras. O importante é ter poder de compra, de preferência, que possa expor para a sociedade com roupas e fotos de viagem. Sistematicamente o consumo se sobrepõe às conquistas pessoais ou é associado a elas.

No mundo moderno de empregos que pagam as contas, os criadores e pensadores são subjugados pela massa de consumidores, em benefício, não da economia, como seus defensores garantem, mas de poucos empresários, fabricantes e comerciantes. Todos que enriquecem sustentados pelo modelo atual.

Desde a especialização do trabalho, que surgiu com o convívio em sociedades complexas, passando pela agricultura e a indústria, todo desenvolvimento humano trouxe como consequência a criação de ocupações melhores para alguns e piores para muitos. Para que a sociedade pudesse lidar com diferenças tão grandes de tratamento, foi preciso aprimorar os cuidados paliativos. As religiões, que sempre cumpriram o papel de aliviar as questões existenciais, passaram a aliviar também a dureza da vida, com promessas de felicidade eterna e progressão nos próximos planos.

O mundo moderno em que vivemos é o próximo estágio, quando o progresso humano expande o acesso a informação, que eventualmente se torna conhecimento. As religiões já não bastam, porque aqueles que tem os piores empregos, não aceitam mais esperar pela próxima vida, ou sequer acreditam nela.

O cinema, os jogos e todas as diferentes formas de lazer e entretenimento se expandem rapidamente como alternativa para minimamente aliviar a realidade de não pertencer aos grupos privilegiados, sem que seja necessário ameaçá-los. Auge dos cuidados paliativos, o consumo oferece um conforto imediato ao esforço exercido, que se confunde com conquista, alienando a maioria em favor da própria sociedade.

Somos zumbis, porque a sociedade que moldamos não precisa de mentes criativas e cultas, ela precisa de trabalhadores que mantenham o organismo funcionando. Tudo porque o modelo de desenvolvimento exige empregos medíocres. Tudo porque não priorizamos os nossos esforços para formular e implantar um novo modelo de desenvolvimento.

O sistema não importa, ele é uma invenção humana, como todas as outras. Ele pode mudar. O que não tem volta são as pessoas que desperdiçam as suas vidas todos os dias com ocupações medíocres.

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