Eu não me sinto seguro

Victor Allenspach
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4 min readOct 16, 2022
Photo by Maria Fernanda Pissioli

O segundo turno começa em alguns dias e eu não me sinto seguro.

Comecei esse blog 4 anos atrás, exatamente porque eu não me sentia seguro. Bolsonaro surfava na onda de fake news, misoginia, homofobia e o medo do comunismo. Até aquele momento, poucas coisas haviam me assustado mais do que ver pessoas queridas confundirem a truculência e agressividade de Bolsonaro com honestidade. Pessoas inteligentes, manipuladas para acreditar que Bolsonaro era um outsider, um não político, mesmo sendo ele deputado a mais de 27 anos. Pessoas boas e bem intencionadas, escolhendo de olhos abertos votar em alguém que sempre pregou a violência e admirou torturadores.

A ditadura militar se tornou cool, as cores da bandeira decoraram um carnaval conservador e o STF se tornou pária. Pária, não por sua incompetência, como Bolsonaro sempre pregou, mas por ser um dos únicos obstáculos contra um golpe militar. A extrema direita cresceu alimentada pelos medos mais inacreditáveis, como a “mamadeira de piroca” e o secreto “plano marxista do PT”. Eleições têm o poder de fazer do ridículo um assunto sério.

É trágico, mas não deixa de ser cômico. O medo do comunismo resiste décadas após o fim da Guerra Fria, lado a lado com o medo do anticristo, da ditadura gay e do fim da família tradicional. Isso diz muito sobre o cidadão de bem.

Desonestidade intelectual é a única explicação para uma família tradicional se convencer de que, discriminando determinado público, conseguirá evitar que os seus filhos, netos, ou mesmo cônjuges, se revelem homossexuais, transexuais e tudo mais que o cidadão de bem abomine.

Desonestidade intelectual também explica policiais que apoiam o acesso de civis a armas de fogo, como se todas essas armas que invadem os lares brasileiros, não fossem um risco ainda maior para as próprias forças de segurança.

Não é preciso dizer, mas a desonestidade intelectual é também a única explicação para que religiosos apoiem a violência explicita dos discursos bolsonaristas, que jamais seriam aprovados por qualquer profeta.

O segundo turno herda esse raciocínio de manada que começou quatro anos atrás, somado a uma pandemia e ao risco real de a democracia ser extinta no Brasil. Mas o que realmente decidirá esse impasse é o mesmo que em qualquer eleição: o que o eleitor ganha?

Todos querem mais do que tem e protegem como podem o pouco que conquistaram. Isso significa que ninguém vence uma eleição prometendo mais impostos, pelo contrário, é preciso oferecer algo vantajoso e fácil de digerir.

Bolsonaro oferece armas de fogo, o que infla o imaginário do cidadão de bem que deseja ser mais do que é. Armas foram criadas para empoderar os fracos e desequilibrar a balança. Quem deseja uma arma não está interessado em igualdade, mas em poder. Talvez nem mesmo o poder real, a ilusão de poder já basta.

Lula oferece distribuição de renda, o que assusta os ricos e arrepia a classe média. Deveria ser o suficiente para ganhar uma eleição, mas está claro que não é. Não é, porque, ao contrário do que pregaram as fake news da “escola sem partido”, consciência de classe não é ensinada nas escolas. Pobres não sabem que são pobres e a classe média acredita que é rica porque parcelou um Iphone. É assim que nasce o (old but gold) HB20 branco com capô verde e amarelo.

O Brasil enriqueceu nas últimas décadas, o que não tornou o país mais consciente de si mesmo. Não é assim que a riqueza funciona. A riqueza encanta e maravilha, ela ilude e alimenta ideais de grandeza. Toda vez que o cidadão de bem troca de carro, ele se vê mais perto da lancha e do jatinho com que sempre sonhou. É essa mentalidade que tornou o Brasil uma sociedade de pobres premium, standard luxo, brigadeiro gourmet. Os pobres de direita.

O cidadão de bem não se sente atraído pelo combate a pobreza, que não lhe trará nenhuma conquista pessoal. Por outro lado, uma arma de fogo na cintura deixa o ego nas alturas. De forma parecida, a violência da Polícia é vendida como Justiça, o que explica, não apenas o apoio de famílias conservadoras a esse modelo falho de segurança pública, como o fetiche de Bolsonaro por torturadores.

Conservador ou não, como alguém pode se sentir seguro sabendo que seus vizinhos votaram em Bolsonaro e que muitos deles têm uma arma de fogo na mesa de cabeceira? (E acreditam em coisas como planos marxistas secretos e mamadeiras de piroca?) Eu não me sinto e esse blog foi a forma que encontrei de manter a sanidade. É como enfrentar a violência com cravos, mas sem a mesma poesia.

O segundo turno está próximo e eu queria afirmar com toda certeza que a vitória de Lula encerrará o bolsonarismo, mas os cinquenta milhões de votos que Bolsonaro conquistou no primeiro turno, mesmo depois de quatro anos de governo truculento, vergonhoso e despreparado, continuarão assombrando nossos dias.

Os garimpos ilegais, a boiada de Salles e o sucateamento das universidades até podem ser desfeitos, mas seus danos serão uma cicatriz que não some. O ódio nunca foi tão bem representado e enfraquecê-lo pode levar gerações.

Eu aposto na vitória de Lula, atento ao próximo Bolsonaro que surgirá. Não mais essa versão esdruxula e incompetente, mas alguém que esconderá o ódio que dissemina com retórica e palavras bonitas.

Eu aposto na vitória de Lula, mas não me sinto seguro, porque as armas que Bolsonaro espalhou, continuarão nas mesas de cabeceira.

Para quem não lembra do Bolsonaro de 2018, eu escrevi sobre ele em:

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