IA e a regulação que precisamos

Victor Allenspach
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10 min readMay 25, 2023
Photo by Andy Kelly

Esse texto foi escrito por um ser humano. Avisos como esse logo serão comuns.

Era uma manhã chuvosa, eu estava sem internet e tentava me distrair em mais um dia desperdiçado com trabalhos que poderiam ser realizados por uma máquina.

Assim como eu, você deve se incomodar com a desigualdade. Diferenças sociais provavelmente já existiam muito antes da propriedade privada, apesar de ter sido a propriedade privada que levou as diferenças sociais a fugirem de qualquer controle e bom senso. Estou certo de que, mesmo a milhares de anos atrás, algum clã de homens das cavernas se rebelou contra seu líder déspota, manipulador e que agia em causa própria.

É fácil imaginar as primeiras relações de troca que se desequilibraram. Alguém conseguiu uma terra melhor, enquanto outro perdeu toda a sua produção para uma praga. Uma família teve mais filhos para trabalhar na terra e outra teve de lidar com a morte prematura do chefe da família. Os motivos que levaram à prosperidade e ao fracasso na origem das sociedades, não são necessariamente diferentes daqueles que afetam as relações atuais.

A sorte determina onde você nasce, filho de quem você é e pertencente a que cultura. Esse já é o primeiro passo para que você seja rico ou pobre. Mesmo que você não tenha sorte, ainda pode contar com o trabalho duro. Superestimado, o trabalho duro pode realmente levar à riqueza, apesar de nem sempre e não para todos. Afinal, a sorte determina até as oportunidades de trabalho e de tirar proveito dele.

Mesmo que o trabalho fosse justo e equilibrado, ou seja, mesmo que as coisas fossem tão simples como ganhar mais por trabalhar mais, essa relação também é injusta. É injusta porque existe acúmulo.

Se o acúmulo de bens não fosse possível, dificilmente alguém trabalharia tanto e jamais teria tanto a ponto de desequilibrar a sociedade. O desequilíbrio é maior a cada geração, justamente porque o acúmulo permite que o resultado do trabalho seja transferido para as próximas gerações. O acúmulo permite até mesmo multiplicar o capital em uma mesma geração, graças a compra de mão-de-obra.

A desigualdade não surgiu como o plano maligno de um poderoso chefão ou como a conspiração de um grupo secreto e com rituais macabros. A desigualdade surgiu como consequência inevitável e infeliz de uma série de progressos menores que dinamizaram a sociedade. Como um todo, a sociedade se desenvolveu diante de tanto progresso e tantas e rápidas mudanças, mas como indivíduos, fomos separados por abismos cada vez maiores.

Hoje é comum conviver com pessoas que ganham duas ou três vezes mais do que você, assim como pessoas que ganham duas ou três vezes menos do que você. É comum, porque aceitamos o mundo como ele nos é apresentado, mas isso não quer dizer que deveria ser comum. Ninguém deveria aceitar ganhar três vezes menos do que qualquer outra pessoa. Estou falando da diferença entre não conseguir pagar um aluguel e ter uma moradia digna.

A meritocracia é uma das mais importantes forças atuando em favor do status quo, apesar de não ser mais do que uma ilusão coletiva. Ilusão moldada para que aceitemos passivamente que uma pessoa colecione carros de luxo, diante de milhares que não possuem uma casa própria. Ou até mesmo exemplos muito mais comuns, como ter empregados domésticos para limpar a sua própria sujeira.

Todos os dias conversamos sobre viagens para o exterior com pessoas que sequer já deixaram o estado em que nasceram, ao mesmo tempo em que ouvimos sorridentes sobre a mansão em condomínio fechado de alguém que nem imagina como é morar em uma kitnet de 35m2. Esse é o dia a dia que aprendemos a aceitar.

Revoluções perdidas

A revolução agrícola permitiu que a vida nômade ficasse para trás. Fixando-se, as sociedades cresceram e os conhecimentos se multiplicaram com a especialização das tarefas. Ainda na origem desse modelo econômico, perdemos a oportunidade de constituir uma sociedade igualitária, que compartilha os benefícios do trabalho coletivo e distribui igualmente o acúmulo de grãos. Ao invés de um modelo colaborativo e que ofereça segurança econômica, alimentamos um modelo ambicioso de enriquecimento individual e pouca segurança econômica. Não preciso dizer que pouca segurança econômica se reflete para todas as esferas da vida, o que constrói uma sociedade de frustrados e ansiosos. Mas essa é apenas uma das muitas oportunidades perdidas.

A revolução industrial reimaginou a produção de bens, agilizou a distribuição e transformou os antigos artesãos que dominavam todo o processo produtivo em engrenagens de uma linha de produção, com trabalhos repetitivos e pouco valorizados. Agora, milhares de produtos passaram a ser acessíveis para todos, que se tornaram consumidores, além de servos de um sistema produtivo que enriquece poucos. A capacidade de multiplicar a riqueza foi elevada a um patamar inimaginável, que poderia ter enriquecido toda a sociedade, mas que mais uma vez foi concentrado nas mãos de poucos indivíduos. Em geral, nas mãos dos mesmos indivíduos que já haviam concentrado renda com a produção agrícola.

O mercado de ações permitiu a qualquer um (com algum dinheiro sobrando), não apenas participar dos riscos e lucros das grandes empresas, como também investir em negócios em que acreditam e que desejam incentivar. É um poder surpreendente, e que poderia ter transformado a sociedade e distribuído um pouco do poder dos grandes empresários, mas que o mercado inevitavelmente transformou em um sistema de apostas, complexo e distante das pessoas comuns. Surgiram Day Traders (aqueles que permanecem com ações apenas por tempo suficiente para lucrar com a alta), Short Sellings (aqueles que apostam na baixa das ações) e tantos outros termos para definir os apostadores do mercado financeiro, que buscam atalhos para a riqueza, ou que se aproveitam de quem busca atalhos para a riqueza.

Investidores são pessoas comuns, com preconceitos, paixões, decisões irracionais, medos e muita ânsia de riqueza. Quando as decisões de investidores são tão flexíveis e livres de responsabilidade sobre as empresas que financiam, como ocorre em nossos dias, o mercado se torna uma marionete, movida por essas mesmas decisões irracionais. Quem arca com o preço das decisões ruins que o mercado toma é a sociedade como um todo, e que nem mesmo sabe o que é mercado de ações (lembre da bolha imobiliária de 2008).

A revolução pela IA

A inteligência artificial surgiu como um golpe. Como toda tecnologia, ela já dava indícios do que seria capaz. Por anos a IA mostrou aos mais atentos que estava chegando e que seria incrível. O terreno estava preparado, mas a grande maioria não esperava por uma mudança tão drástica.

Estávamos acostumados com avanços lentos e consistentes, como o autopreenchimento de senhas, um buscador acurado que trás resultados uteis para pesquisas e algoritmos que nos sobrecarregam com posts não solicitados. Mas as IAs surgiram e mostraram que nós não estávamos preparados para lidar com o futuro. Ansiosamente esperávamos por viagens espaciais e baterias infinitas para celulares, mas não esperávamos ser substituídos pelas máquinas. Não tão rápido.

Nunca foi tão fácil entender a fúria que levou trabalhadores a destruírem teares mecânicos nos primórdios da revolução industrial. Era frustrante descobrir que sua força de trabalho, a única forma que o modelo econômico daquele momento permitia que uma pessoa fosse capaz de se sustentar, de repente não valesse mais nada. De repente a linha de produção não precisa mais da engrenagem em que você passou a ultima década se moldando para ser.

O sentimento é ainda mais frustrante hoje, porque não estamos falando de trabalhos repetitivos e condicionantes que qualquer pessoa pode aprender. Estamos falando de profissionais especializados, extremamente competentes, com anos de experiência no mercado, e que se tornam obsoletos do dia para a noite.

Como se sente um ilustrador profissional que cobra centenas ou mesmo milhares por um trabalho e que de repente pode ser substituído por um site que faz o mesmo por algumas dezenas? O tear mecânico de nossos tempos entrega, não apenas o trabalho de centenas de pessoas, como ocorreu na revolução industrial, como também o trabalho de centenas de pessoas muito competentes e qualificadas.

Hoje, qualquer um pode realizar o trabalho de um ilustrador. Alguns serão melhores em treinar a IA, alguns serão mais criativos em elaborar imagens e utilizar essas ferramentas, mas qualquer um, com acesso a internet, pode gerar uma ilustração equivalente aos maiores gênios da arte, vivos ou mortos.

A IA já pode escrever redações, poemas, canções, leis, contratos, artigos científicos e o que mais você deseje. Ela escreve bem? Tão bem quanto um profissional? Aparentemente não, mas o ponto não é esse. O ponto é que se a IA já é capaz de escrever uma redação melhor do que um adolescente fazendo a sua lição de casa, não levará muito tempo para que ela escreva um ensaio tão bom quanto o de um profissional. Teremos novos lançamentos de Machado de Assis? Gabriel Garcia Marquez?

Se a IA alcançar o potencial de nossos maiores escritores, músicos e pintores, ela também poderá superá-los? A humanidade será lançada para o escanteio da criatividade e da produção artística? Os artistas que restarem serão estudantes de IA, que dedicam seus dias a explorar as potencialidades dessa ferramenta e elevar as criações a níveis jamais imaginados?

É um cenário extremamente decepcionante, mas também não será esse um passo inevitável no progresso humano? Assim como foi o tear mecânico e a agricultura? O dinheiro e o mercado de ações?

O chatGPT foi lançado para o público em novembro de 2022 e a humanidade simplesmente não pode mais viver sem o chatGPT, que em 2023 foi avaliado em 20 bilhões de dolares. O Midjourney foi lançado em julho de 2022 e já é impensável um mundo sem os geradores de imagens por inteligência artificial. Não faz sentido discutir se a IA deve ou não existir.

Da mesma forma com que hoje olhamos para uma antiga prensa, tão rudimentar se comparada a mais simples impressora doméstica, podemos em breve encarar as ilustrações feitas a mão como algo ultrapassado e limitado. Um texto, como esse, pode soar ridículo para os padrões futuros. Nesse cenário, faz sentido lutar para salvar empregos?

Ninguém ainda sabe quais serão as consequências para a humanidade ao se tornar irrelevante diante do poder das máquinas, mas temos de lutar uma batalha que podemos vencer e essa não é a batalha contra as IA’s.

A revolução que precisamos

As máquinas fazem o trabalho de dezenas de pessoas, os computadores de centenas e a IA de milhares. É um progresso exponencial e que provavelmente já foi previsto a muito tempo atrás, mesmo que essas tecnologias sequer fossem imaginadas na época dessas previsões.

Como tantas oportunidades perdidas ao longo da história do progresso humano, a IA surge como mais uma ferramenta capaz de multiplicar os ganhos de poucos e condenar a grande maioria a pobreza e a servidão.

Em poucas décadas as IA estarão em tudo, como assistentes de culinária, agentes de viagem, pesquisadores em laboratórios e, claro, artistas. A IA é o próximo salto que a indústria procurava, mas ela também pode ser a revolução que a humanidade precisa.

Da mesma forma com que hoje eu posso gerar praticamente sem custos uma capa profissional para o meu próximo livro, uma IA pode finalmente reduzir os custos do transporte publico e dos sistemas de saúde. Hoje a medicina, por exemplo, repousa confortavelmente em uma bolha de escassez de profissionais e salários exorbitantes, mas que finalmente é ameaçada por computadores que podem ler um exame e propor tratamentos com ainda maior exatidão que um humano com décadas de experiência.

Os médicos resistirão contra as mudanças e alegarão o mesmo que os artistas, os juristas e todas as áreas ameaçadas pela tecnologia, mas por quanto tempo eles resistirão? Quanto tempo levará para que os pacientes percebam que um médico não é mais necessário para um bom tratamento? Quanto tempo levará para as pessoas entenderem que o fator humano não é tão importante quanto se imaginava?

A humanidade pode e será substituída pelas máquinas em quase todas as profissões que conhecemos hoje. Surgirão novas profissões e muitos profissionais conseguirão se atualizar para continuar relevantes, mas porque isso importa? Importa porque as pessoas têm medo de perder empregos. Importa porque as pessoas têm medo de não ter uma fonte de renda. Importa porque todos sabem que os benefícios conquistados pela IA, assim como todos os benefícios que já acumulamos com a Revolução Industrial, e mesmo antes dela, não serão distribuídos igualmente.

Não é o fim dos empregos que devemos temer com o surgimento de novas tecnologias, mas a má distribuição dos benefícios alcançados. Quando um trator passou a fazer o trabalho de dezenas de pessoas, essas pessoas não deveriam ter voltado ao mercado de trabalho como desempregadas. Quando artistas perdem seu ganha pão para um computador, eles não deveriam voltar ao mercado de trabalho como profissionais desatualizados.

Não é de empregos que o mundo precisa. Essa é apenas a realidade que conhecemos do mundo que nos foi apresentado.

Devem existir milhares de maneiras de fazer da IA a revolução que precisamos, mas para o formato e o funcionamento da nossa sociedade atual, e para os propósitos desse texto, eu apostaria em impostos. Impostos sobre a Inteligência Artificial podem ser destinados diretamente para a distribuição de renda. Programas como Bolsa Família ou até mesmo projetos ainda mais ambiciosos. A regulação das IA’s é urgente e essa é a oportunidade que temos de fazer delas a revolução que precisamos.

Ao invés de encontrar sobrevida para a força produtiva, devemos nos voltar para a redução das horas de trabalho. O mundo pode construir uma distopia de mega corporações que exploram uma sociedade de servos em benefício de poucos bilionários, já tão alardeada e romantizada pela literatura e o cinema, ou pode construir uma utopia onde o trabalho representa apenas uma pequena parcela da vida. Uma utopia onde a vida pode ser muito mais do que passar oito horas por dia disponível para uma função medíocre, com lazer, estudo, e até mesmo, arte. Arte pelo prazer de criar, e não para satisfazer clientes e seus orçamentos apertados.

Podemos buscar o mundo que desejamos ao invés de apenas imaginá-lo, até porque, a imaginação está fugindo do nosso controle.

Eu já falei sobre desigualdade em:

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