O crime é ser pobre

Victor Allenspach
vallenspach_pt
Published in
3 min readMay 15, 2022
Photo by Jay Rembert

Policial no Brasil é soldado. Viatura de polícia é caveirão. Toda a hierarquia, estratégia e treinamento da polícia são, não apenas militar, mas de guerra. Isso porque em algum momento nós compramos a ideia de que estamos em guerra.

Guerra contra quem? “Contra as drogas”, responde o pai de família, juiz, religioso e usuário de cocaína. “Contra o crime organizado”, responde o pai de família, policial, religioso e miliciano.

Todo mundo conhece um usuário de drogas, mesmo que jamais chame-o assim. Todos têm ídolos, admiram cantores e até bilionários, sem julgá-los pelas drogas que usam abertamente.

Sequer estou citando as drogas legais, que são vendidas em farmácias ou prateleiras de supermercado. Falo das drogas tão temidas pelo cidadão de bem, que nem sabe o motivo de odiá-las tanto.

Mesmo assim, a política vigente no Brasil é de que as drogas devem ser proibidas, e quem vive delas, criminalizado. Quem protege o então criminoso, seja sua namorada, seu amigo ou a sua própria mãe, agora é cúmplice. “Amigo de bandido, bandido é”.

Para sobreviver, o criminoso também vira soldado. Podemos chamar isso de vida fácil? Atalho conveniente? Quem sabe? Nada muda o fato de que agora ele é soldado. Ele vai morrer jovem e vai levar o máximo de policiais que puder com ele. Porque está em guerra.

A sociedade procura soluções imediatas para seus problemas e nada é mais imediato do que matar e morrer. Matar os outros e morrer quem não importa. Pobres que matam pobres em uma arena, sob os olhos atentos da sociedade rica, ou longe disso, mas privilegiada o bastante para se sentar no sofá e assistir e julgar todas essas mortes, dramaticamente apresentadas pelo Datena da vez.

No último dia 11 a guerra derrubou o memorial aos mortos na chacina do Jacarezinho. O memorial dizia:

“Homenagem às vítimas da chacina do Jacarezinho!

Em 06/05/2021, 27 moradores e um servidor foram mortos, vítimas da política genocida e racista do Estado do Rio de Janeiro, que faz do Jacarezinho uma praça de guerra, para combater um mercado varejista de drogas que nunca vai deixar de existir.

Nenhuma morte deve ser esquecida.

Nenhuma chacina deve ser normalizada.”

Entender que os 28 mortos de Jacarezinho são vítimas é apenas o primeiro passo, ainda longe da solução, mas é um passo que a comunidade do Jacarezinho está disposta a dar.

Em contrapartida, a atitude da Polícia de derrubar o memorial passa a clara mensagem da máxima já citada de que “amigo de bandido, bandido é”. Uma intimidação a todos que habitam a arena dessa guerra e tentam fazer dela um lar, mesmo perdendo todos os dias os seus filhos para um conflito evitável.

Mas guerra contra quem? “Contra as pessoas do morro”, responde o pai de família, traficante de bairro nobre, com clientela selecionada. Protegido da violência, ele mora onde o caveirão jamais passará. Um bairro onde jamais ocorrerá uma chacina como a do Jacarezinho.

Toda guerra tem dois lados que perdem e alguém que ganha muito dinheiro. A Polícia é um dos lados dessa guerra e vai usar todos os meios que puder para vencê-la. Culpá-la é inútil. Podemos apenas constatar o óbvio: a guerra vai existir enquanto ela for lucrativa.

Lucrativa para os chefes do tráfico? Para os policiais corruptos? Não, esses são apenas soldados. Soldados privilegiados, mas ainda soldados. O lucro está enraizado no sistema e enche os bolsos de quem não aparece e que talvez nem seja possível combater.

Então é uma guerra perdida? Com certeza. Mas é também uma guerra que não precisa acontecer. Quem gosta de guerra não é bandido e nem policial.

Eu já falei sobre a guerra em:

--

--