O soldado desconhecido

Victor Allenspach
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Published in
4 min readOct 27, 2020
Photo by Suzy Turbenson

Por mais flores que sejam depositadas nos túmulos e por mais belas que sejam as palavras recitadas em memória dos mortos, poucas pessoas trocariam as redes sociais, ou até mesmo os protestos de rua, pelo combate real. Não falta coragem, sobra bom-senso.

Quando a sangrenta Guerra de Canudos chegou ao fim, seus soldados marcharam vitoriosos para o Rio de Janeiro onde descobriram que não teriam mais soldos ou um lugar para viver. Ex-soldados se juntaram a ex-escravos para ocupar os morros, o que em pouco tempo daria origem a primeira favela do Rio de Janeiro. Um tratamento bem diferente do esperado para “heróis”.

Entre tantos grupos que formavam as tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai estavam os ex-escravos que deram suas vidas pela própria liberdade. Lutavam pela esperança de serem pobres e tão dependentes de seus patrões, que a diferença para a relação escravocrata era pequena. Ofereciam a vida por uma pequena conquista.

Mais de um século depois, poucos, ou mesmo nenhum dos filhos de congressistas norte-americanos, se alistaram para enfrentar o temido “eixo do mal”, exaltado por Bush. Resumo da triste e desumana conveniência de fazer guerra com o sacrifício alheio, relação que Michael Moore expôs em seu documentário Fahrenheit 9/11.

Em um primeiro olhar, as Guerras Mundiais parecem exemplos mais admiráveis do que os anteriores, pois se tratava de enfrentar o mal que assombrava o ocidente. Assombrava os territórios dos brancos e ricos, já que as potências não costumam se importar muito com as atrocidades conduzidas por genocidas do mundo pobre. Hitler foi terrível, mas não menos do que Leopoldo II, responsável pela morte de 10 milhões de congoleses. Ainda assim, poucos já ouviram falar do rei da Bélgica, que controlou o Congo de 1885 a 1908, e que recentemente teve algumas de suas estátuas removidas.

Em outras palavras, para que uma guerra seja justificável, ela precisa ameaçar o ocidente. Somente então passam a importar valores como a pátria e a liberdade, capazes de unir o mundo para impedir um mal maior. O Congo não atendia a essa exigência e não mereceu uma intervenção internacional.

A guerra justa é um conceito maleável e que atende aos mais perversos objetivos, legitimando toda forma de massacre em ambos os lados da guerra, ainda assim, essencial para que a população não perca a vontade de lutar. Churchill, Roosevelt e mesmo Hitler precisaram convencer seus cidadãos de que lutavam uma guerra justa, independente do quão tortuoso esse raciocínio pudesse ser. Em uma guerra justa, todos estão contra o inimigo.

Inacreditável é pensar que tantas pessoas consideram natural a expectativa da guerra. Quase todas as nações possuem exércitos e cultuam a guerra através dos seus “heróis” e feitos militares, muitas vezes ensinados para crianças em salas de aula. Feitos que nada mais são do que batalhas, sequer lembradas como um mal necessário ou com a vergonha que deveríamos sentir por uma barbárie inevitável, pelo contrário, são cultuadas como momentos épicos. É assim a Batalha do Riachuelo, um dos momentos mais determinantes da Guerra do Paraguai, e que é lembrado como uma vitória honesta em uma guerra justa.

Com seus museus e um ensino patriótico da História, as nações perpetuam o militarismo, o medo do estrangeiro e até o próprio imperialismo. Isso significa que, confortavelmente dentro da premissa de uma guerra justa, todas as nações estão dispostas a enviar, mais uma vez, os seus jovens para uma morte violenta e medíocre. Conseguem tornar até mesmo a simples ideia de paz em algo incômodo ou ridículo, afinal, quem lutará as nossas guerras se não forem esses bravos heróis?

Guerras são inevitáveis, é o que dizem. Precisamos nos proteger, é no que acreditam. Assim o medo convence nações a gastarem somas impressionantes de suas riquezas e impostos com armas, munições e máquinas de guerra. Equipamentos que devem ser renovados com frequência, porque as outras nações também investem, o que completa o ciclo vicioso. Nações são entregues a grandes corporações bélicas e seus generais que vivem como reis, com inúteis submarinos de estimação.

Esse é apenas mais um capítulo da teimosa, infrutífera ― e já exaurida ―, procura por heróis e salvadores. Uma necessidade que parece maior a cada dia, ou mais evidente pelas mídias sociais que dão voz a toda pequena aflição e ansiedade. Quem procura, não encontra heróis entre os líderes populares, políticos e religiosos, e sequer no meio acadêmico e científico, que sempre esteve distante da realidade comum. Mais próximos de suas realidades, encontram heróis no cotidiano, entre médicos, bombeiros e policiais. Assim se convencem de que os médicos merecem salários maiores do que professores ou operários, de que a polícia precisa ser violenta e de que a guerra contra os criminosos faz mesmo algum sentido. Guerra. Gostam dessa palavra porque remete ao sacrifício e o altruísmo, colocando no alto desse panteão de heróis comuns, ninguém menos do que o soldado.

Faz todo sentido homenagear os soldados e policiais que estiveram em combate, que perderam a sanidade e talvez a vida. Pessoas que se sacrificam todos os dias pelo bem de outras, como o mais altruísta dos atos. O que não podemos esquecer é que a guerra é uma romântica fábrica de mártires e que poucos estão dispostos ao sacrifício que ela pede. Depositamos flores sobre túmulos, não com admiração, mas como quem agradece ao faxineiro por fazer o trabalho sujo que não queremos. No fundo, todos sabemos que aqueles que morrem em batalha não são heróis, são vítimas.

Eu já falei sobre os gastos militares em:

E sobre a educação militar em:

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