O valor do livro impresso

Victor Allenspach
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Published in
5 min readNov 24, 2020
Photo by Susan Yin

Crianças são como antropólogos diante de uma grande e isolada tribo. Elas observam atentamente os costumes dos adultos e descobrem tudo o que é certo e errado, o que devem ou não fazer. Aprendem a andar e falar, a se comportar e a fazer silêncio. Ainda não são capazes de julgar os costumes dos adultos, mas aos poucos aprendem a gostar até mesmo do que no começo parecia desconfortável ou ruim, como o sorvete que congela a boca e que é deliciosamente doce.

Essas pequenas antropólogas caminham pela cidade e veem bancos, igrejas, delegacias de polícia, algumas lojas de roupa e sapato, restaurantes, lotéricas, uma hamburgueria que abrirá apenas à noite e uma banca de jornal que sobrevive de vender crédito de celular e palavras cruzadas. Silenciosamente a cidade está dizendo tudo o que importa para os adultos.

Dentre outras coisas, por exemplo, a cidade diz que muita gente gosta de roupas. Os adultos elogiam as roupas uns dos outros e desejam sapatos e blusas que encontram em dezenas vitrines, muito antes de as crianças se importarem com a própria aparência. Observando os costumes dos adultos, as crianças rapidamente entendem que roupas cumprem um papel maior do que proteger o corpo. Qual exatamente? Não importa. Roupas importam.

Da mesma forma as crianças entendem que delegacias de polícia, bancos, fóruns e prefeituras tem um papel especial na cidade. Qual? Elas não fazem a menor ideia, mas são prédios grandes e imponentes, que podem ser encontrados em qualquer cidade. Os adultos falam com certo respeito, temor ou até ódio desses lugares, mas estão sempre falando deles. Crianças ainda não entendem o conceito de “instituição”, por mais que já estejam se familiarizando com esses lugares importantes que conduzem a vida em sociedade.

Religiões sobrevivem em nossos tempos justamente porque são instituições, enraizadas na sociedade. Toda praça possui uma igreja e quase todo lugar tem uma imagem, pulseira, adesivo ou qualquer outra coisa que remeta a alguma religião. Isso significa que, mesmo com pais ateus ou simplesmente desinteressados pelo destino de suas almas, as crianças estão cercadas pela religiosidade. Quanto mais fervorosa for a crença dos pais, maior será o papel da religião, seja ele qual for. Se estiverem cercadas de pessoas com a mesma religião de seus pais, ainda maior será essa assimilação, o que explica porque religiões são limitadas por barreiras naturais e até mesmo por fronteiras invisíveis. Crescer frequentando igrejas católicas e cercado por católicos dificilmente te fará animista.

Não somos limitados pelo meio, mas ele exerce uma força tremenda sobre as nossas decisões e principalmente sobre coisas que nunca chegamos a decidir conscientemente, como o gosto por roupas, o consumo de alimentos ultraprocessados e até mesmo a religião. Crianças dificilmente questionam a realidade que ainda não compreendem o suficiente, despreocupadas em imaginar que o mundo pode ser diferente de como ele é apresentado. Confiam aos adultos os julgamentos e decisões que ainda estão longe de ser um incômodo para as suas mentes. Mesmo depois de adultas, a maioria das ideias jamais serão questionadas, simplesmente porque nunca foram confrontadas.

Isso não significa que as crianças aprendem apenas o que ensinamos, elas aprendem muito mais. Um adulto que prega a importância da boa alimentação, ao mesmo tempo em que lambe os dedos lambuzados de fritura, está ensinando mais do que pretendia. O mesmo acontece com aqueles que sempre dizem que a escola vai garantir uma carreira, mas nem se lembram de como é estar em uma sala de aula, ou que garantem que a leitura é importante, e erguem orgulhos o único livro que repousa na prateleira (a Bíblia empoeirada ou “O Segredo”). Crianças sabem a diferença entre palavras e ações. Elas crescem aprendendo a ser como seus pais e não o que seus pais desejam para elas.

Perceba agora que no segundo parágrafo eu não citei “livrarias”. Não citei porque na praça da minha cidade não seria possível encontrar alguma, ou mesmo fora dela. Talvez em toda a cidade, com seus 150 mil habitantes, existam duas ou três livrarias. Existem bibliotecas, é verdade, distantes dos centros e das pessoas, o que contribui para que as crianças cresçam mais acostumadas com vitrines de roupas do que de livros. É bastante constrangedor pensar que a nossa civilização pode ser facilmente resumida à praças de alimentação e lojas de inutilidades.

As lojas de inutilidades lotam enquanto as livrarias fecham as portas, mas nem tudo está perdido. A sociedade sempre avança em um determinado sentido até descobrir que não dá para continuar, então chama esse ponto de extremo e mergulha na direção contrária, até descobrir o que ela chamará de extremo oposto. Assim os excessos são compensados e a sociedade flui dentro de uma média cada vez mais constante, aparando os excessos até encontrar uma situação próxima do ideal.

É o que acontece com a comida ultraprocessada. Provavelmente atingimos nos últimos anos o extremo do consumo de fastfood e agora mergulhamos em uma onda vegana e orgânica, de alimentos de produção local, que forçam a indústria a se adaptar. Foi preciso chegar ao limite e atingir níveis alarmantes de obesidade, mas estamos aprendendo a lição. Tenho certeza de que as próximas gerações terão bem menos contato com fastfood do que eu tive na minha infância, ou, pelo menos, elas terão mais contato com opções saudáveis, que influenciarão as suas decisões.

O exemplo importa. Como os alimentos saudáveis, os parques e os museus, livrarias precisam ocupar espaço no horizonte das novas gerações. Precisam contaminar o ar com o cheiro de milhares de impressões, prateleiras coloridas e infinitas promessas de novos conhecimentos, mundos e perspectivas. Áreas de leitura, que despertem alguma curiosidade dos pequenos, ao tentarem entender o que pode haver de tão interessante naquelas páginas que entretém adultos.

Os livros digitais são um importante avanço, mas isso não significa que os livros impressos estejam condenados. Pelo contrário, eles devem preencher as estantes, pesar nas mochilas e se amarrotarem entre os dedos dos leitores mais assíduos. Livros impressos precisam estar ao alcance dos olhos de quem ainda não descobriu o prazer de ler.

Eu já falei sobre educação em:

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