Tentando entender liberdade de expressão com Bolsonaro

Victor Allenspach
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Published in
4 min readOct 1, 2018
photo by Heather Mount

O direito à liberdade de expressão é uma conquista recente no Brasil. Apesar de a Constituição de 1967 já garantir o livre pensamento, apenas na Constituição de 1988 esse direito deixou de ser condicionado ao governo e aos bons costumes.

Seu fundamento é proteger a liberdade individual e também a coletiva, o que pode não fazer sentido a um leitor desatento, mas pense melhor. Ao proibir um jornalista de publicar uma matéria, por exemplo, não é apenas o jornalista que sofre censura, mas toda a comunidade, que deixa de ser beneficiada pelas informações ou debates consequentes dessa publicação.

Com poucas variações, a liberdade de expressão é consenso entre as nações democráticas na mesma medida em que é contrassenso nos regimes autoritários. É aquela velha anedota que o professor de História contou na aula e ninguém prestou atenção: “você pode falar mal da democracia porque está em uma democracia”. Em outras palavras, é possível medir a qualidade de uma democracia pela liberdade que ela promove.

Por outro lado, todo direito e toda liberdade precisa de regras que esclareçam os seus limites, a fim de garantir que todo mundo tenha acesso a esse mesmo direito, pois do contrário, seria um privilégio.

Como esse é um campo minado em que muita gente se arrisca nas redes sociais, tão sujeito a interpretações que silencia os mais prudentes, acredito que vale a pena tentar uma explicação. Para ilustrar, trago o mastigado exemplo de Bolsonaro.

Liberdade de expressão é o direito que toda pessoa tem de se manifestar, expor ideias contrárias e criticar absolutamente qualquer pessoa, seja santo, juiz ou patrão. Por exemplo, quando Bolsonaro diz no alto do seu machismo que “eu não empregaria (homens e mulheres) com o mesmo salário” ou quando ele interpreta de forma convenientemente enganosa o significado de democracia “a minoria tem que se calar e se curvar a maioria”, não importa o tamanho dos absurdos, ele se manifesta dentro do seu direito.

A liberdade de expressão é ampla, mas não o suficiente para permitir a ofensa. É aí que as coisas ficam nebulosas, já que definir o que se caracteriza como ofensa varia de acordo com o dano causado, o calor do momento e o ponto de vista do juiz, que pode ou não determinar que houve dano moral.

Por exemplo, quando a repórter Manoela Borges questionou Bolsonaro sobre o golpe militar, ele respondeu “Você é uma idiota. Você é uma analfabeta. Está censurada.”. Qualquer pessoa consideraria essas palavras ofensivas, o que daria por certo o veredicto, mas a realidade é tão imprevisível que mesmo com tanto a seu favor, a repórter (que alega não ter recebido nenhum respaldo da Rede TV) teve receio e desistiu de processar o deputado.

É então que nós entramos no maior perigo da liberdade de expressão, o discurso de ódio. Muito mais grave do que a ofensa, é considerado discurso de ódio a promoção ou incitação da violência a um determinado grupo de pessoas, seja por sua raça, religião ou origem. Em outras palavras, a punição ao discurso de ódio é um mecanismo de defesa contra a intolerância, ainda que não muito efetivo ou fiscalizado.

Nesse caso Bolsonaro é um exemplo persistente, dizendo coisas como “O grande erro da ditadura foi torturar e não matar”, “Não te estupro porque você não merece”, “Não vou combater nem discriminar, mas, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”, “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro ele muda o comportamento dele”.

Em apenas uma frase Bolsonaro exalta a tortura e os assassinatos, e em mais três a violência contra mulheres e homossexuais. Diferente da opinião e da ofensa, ele explicitamente incita a violência, o que é ainda mais grave por sua posição como deputado. Parece não restar dúvida de que Bolsonaro cometeu diversos crimes, mas as coisas nunca são tão simples, o que nos leva ao último ponto, a acusação.

Todos são livres para acusar qualquer pessoa, desde que existam provas. Ao dizer que uma pessoa é homofóbica ou racista, é necessário comprovar que houve determinada atitude, ou a acusação poderá se voltar contra o acusador na forma de difamação.

Recentemente Bolsonaro foi absolvido de uma acusação de racismo pelo discurso que fez a respeito de uma comunidade quilombola “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas.” “Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais”.

Não faltaram provas, mas um juiz (o placar ficou em 3 a 2).

Proteger a liberdade de expressão é tão importante quanto condenar o discurso de ódio. Quando a Justiça não pune um candidato à presidência que simpatiza com a violência a homossexuais, ela permite que o ódio se dissemine livremente.

Pode parecer que o discurso de Bolsonaro é inofensivo, assim como o grito de parte da torcida do Atlético Mineiro “Ô cruzeirense, toma cuidado: o Bolsonaro vai matar veado”, mas a verdade é que é justamente a liberdade de proferir abertamente esse discurso que alimenta notícias como essas:

“Padrasto é acusado de matar enteado de 10 anos por dizer que é gay”

“Pai mata o próprio filho após ele revelar que é homossexual”

“‘Ensinem seus filhos a amar’: o apelo da mãe do menino de 9 anos que se matou após bullying por homofobia”

“Mãe tortura filho até à morte por achar que este era gay”

O problema no Brasil não está nos Direitos Humanos, como muitos humanos ironicamente insistem. Está em uma Justiça falha, conivente e que promove o ódio ao não puni-lo. Uma Justiça que alimenta Bolsonaros, livres para espalhar o terror com o seu exemplo.

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