Ética sem integridade

Valmir Nascimento
Cultura e Teologia
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3 min readMay 22, 2018

A notícia do afastamento de um jurista brasileiro da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da qual era presidente, em virtude da acusação de violência doméstica e assédio sexual evidencia aquilo que pode ser chamado de ética sem integridade.

Este oximoro realça a ambiguidade da condição humana e o problema do relativismo ético: enquanto defende, de maneira pública e teórica, certos princípios de proteção ao ser humano, este mesmo agente passa por cima de valores morais básicos na condução da vida privada.

A ética sem integridade é a expressão de um vício moral chamado hipocrisia — o comportamento que não condiz com aquilo que o indivíduo afirma defender. Tomás de Aquino dizia que a hipocrisia, ou simulação, “consiste em mentir por atos”. Joseph Butler também possuía uma definição pertinente. Hipócrita é alguém que falha em reconhecer que as regras de conduta se aplicam à sua própria pessoa, afirmava o bispo do século dezoito.

O que produz isso? Há muita coisa a ser dita sobre este tema, mas, a bem da brevidade, uma pista interessante é apresentada por Derek Bok, ex-reitor da Universidade de Harvard, para quem “o curso atual de ética aplicada não busca transmitir um conjunto de verdades morais, mas tenta incentivar o aluno a refletir cuidadosamente sobre complexas questões morais”. Com isso, afirma Bok, a principal meta hoje não é incutir “respostas corretas”, mas “aguçar a sensibilidade dos alunos para que eles detectem os problemas éticos quando surgirem, além de familiarizar mais os alunos com o melhor pensamento ético acumulado ao longo dos séculos e capacitá-los para ponderar as questões éticas que enfrentarão na vida”.

Numa época em que questões éticas são ponderadas, problematizadas e racionalizadas à luz de um inventário de opções da filosofia moral, sobra pouco — ou quase nenhum — espaço para falar sobre retidão, caráter, internalização de valores e virtudes morais. Nestes termos, a ética não é outra coisa senão um instrumento teórico de direcionamento para o julgamento do outro, com base em premissas abstratas.

Outra pista nos é fornecida por C. S. Lewis em seu clássico A abolição do homem. O professor de Oxford criticava o subjetivismo ético, segundo o qual cada pessoa deve encontrar dentro de si os valores necessários para a vida, em oposição a valores objetivos. De maneira contundente, Lewis critica tal perspectiva ao dizer que “o ceticismo em relação aos valores é apenas superficial, sendo válido apenas para os valores alheios; eles não são muito céticos em relação aos valores correntes em seus próprios meios”. Esse fenômeno, prossegue Lewis, é bastante comum. “Muitos dos que ‘desmascaram os valores tradicionais ou (como eles dizem) ‘sentimentais’ têm no fundo valores próprios, que creem imunes a desmascaramentos semelhantes”. O problema é que isso produz o que Lewis chama de “homens sem peito”: “Esperamos deles virtude e iniciativa. Caçoamos da honra e nos chocamos ao encontrar traidores entre nós. Castramos e ordenamos que os castrados sejam férteis”.

Tal subjetivismo é outro nome para individualismo, que assim foi conceituado por Charles Taylor em Ética da Autenticidade: “todo mundo tem o direito de desenvolver a própria maneira de viver, fundamentada no próprio sentido do que é realmente importante ou de valor. As pessoas são convocadas a serem verdadeiras consigo mesmas e a buscar a própria autorrealização”. Em que isso consiste? “Cada um deve, em última instância, determinar por si mesmo. Nenhum outro pode ou deve tentar ditar o seu conteúdo”.

A partir dessas duas pistas, da teorização e do subjetivismo, a verdadeira ética há de nos conduzir à integridade. Tal princípio refere-se à conduta autêntica, honesta e virtuosa, que deve iniciar no âmbito privado do indivíduo e atingir a vida em sociedade.

A integridade manifesta-se no relacionamento com o outro, na vida em comunidade; o que nos leva a perceber que a integridade nunca é uma ética abstrata e isolada, estritamente pessoal ou eminentemente pública. Afinal, o ser humano ético é o ser humano íntegro. Menos que isso, não há falar-se em ética!

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Valmir Nascimento
Cultura e Teologia

Doutorando em Filosofia, Mestre em Teologia, Graduado em Direito. Escritor, professor e conferencista. Conselheiro do Inst. Bras. Direito e Religião.