Contra a religião política

Valmir Nascimento
Cultura e Teologia
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3 min readNov 3, 2021

Em meu livro Entre a Fé e a Política (CPAD, 2018) defendo a legitimidade e a importância dos cristãos envolverem-se com a política, como forma de testemunho público e influência positiva na sociedade.

Contudo, percebo que um dos maiores perigos nesse envolvimento, quando feito sem o necessário amadurecimento e vigilância, é a adoção de uma religião política, na qual esses dois elementos se entrelaçam a tal ponto que o Reino de Deus é deixado em segundo plano, em detrimento do personalismo, das disputas e dos interesses em jogo.

Não raro, a participação política é feita a partir de visões espiritualizadas da disputa, com a citação de versículos isolados das Escrituras, especialmente daqueles que se aplicam à teocracia do antigo Israel. É estranho como a religião política, em vez de conduzir a uma participação sábia, moderada e amistosa, acaba sendo dirigida pelo ressentimento, pela ira, pela inimizade, pela arrogância e pela incivilidade.

A religião política, além de todos os demais erros, encara a política não como meio, mas como fim, inclusive como forma de salvação da sociedade e da cultura. Mas, como bem lembrou Kristen Johnson, “não somos chamados a ser heróis que salvam a pátria ou salvam a cultura”. Somos chamados a viver como filhos de Deus neste mundo e a testemunhar em todas as esferas da sociedade, inclusive no ambiente público, mas sem depositar esperanças irreais e soteriológicas no que pode ser realizado por meio da política, muito menos ser sucumbido pela ambição de dominação e poder da cidade terrena.

A religião política cria outro problema para o Reino: ela institucionaliza uma política da religião. Enquanto na religião política os religiosos tentam cristianizar César, na força da doutrinação; na política da religião César tenta “politizar Deus”, não com uma genuína intenção de atingir o bem comum, mas como simples estratégia de manobra. No fim, a religião política subverte as palavras de Jesus, dando a César o que pertence a Deus (glória e reverência), e aos religiosos — que supostamente agem em nome de Deus — aquilo que pertence a César (poder político e autoridade terrena).

Em vez de uma religião política, sugiro que enquanto cristãos adotemos uma postura de presença fiel na política, para usar a expressão de James Davison Hunter. Essa abordagem implica respeito e humildade, e entende que as estruturas de poder deste mundo caído não podem ser regeneradas, transformadas e muito menos confundidas com o Evangelho de Cristo.

Como peregrinos, exilados, nos encontramos em terra estrangeira, com a responsabilidade de cuidar e orar por ela, e buscar a sua paz (shalom), como os israelitas na Babilônia (Jr 29.5–8). Essa presença fiel significa viver dignamente os valores de Deus em uma cultura diferente, sem a pretensão de transformar Babilônia em Jerusalém. Isso parece encontrar ressonância nas narrativas de Atos. Os discípulos testemunharam do Evangelho de dentro para fora, e de baixo para cima. A religião política faz o inverso!

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Valmir Nascimento
Cultura e Teologia

Doutorando em Filosofia, Mestre em Teologia, Graduado em Direito. Escritor, professor e conferencista. Conselheiro do Inst. Bras. Direito e Religião.