Inteligência artificial e teologia cristã

Valmir Nascimento
Cultura e Teologia
Published in
9 min readFeb 22, 2018

Não é coisa de ficção científica ou exercício de futurologia. Realmente, estamos vivendo em uma era de inovações tecnológicas sem precedentes. Carros que andam sozinhos, sequenciamento genético, nanotecnologia, Big Data, realidade virtual, robôs inteligentes e drones que fazem entregas a jato são alguns exemplos do atual estágio da humanidade.

Nesta época de revolução digital, duas novas tecnologias despontam: a Internet das Coisas (objetos e equipamentos conectados à rede de computadores) e a Inteligência Artificial (IA). De acordo com projeções do Fórum Econômico Mundial[1], em 2025 10% das pessoas vão usar roupas conectadas à internet, 90% da população mundial terá acesso à internet e usará smartphones, 5% dos produtos de consumo serão impressos em 3D, 10% dos carros (EUA) serão autônomos e 30% das auditorias serão realizadas por inteligência artificial.

Tais inovações afetam não somente a forma como lidamos com a tecnologia, mas também a cultura e os valores da sociedade em geral. Isso de chama cybercultura. Na medida em que surgem e passam a ser utilizados pelas pessoas, estes recursos colocam em discussão aspectos centrais das cosmovisões, especialmente quando tocam em temas sensíveis que envolvem questões éticas e morais.

Isso nos leva a perceber a importância de refletirmos sobre as novas tecnologias e suas implicações éticas e teológica, principalmente. Alguém pode considerar isso sem sentido ou até mesmo desnecessário, mas basta relembrar que há pouco mais de vinte anos grande parte dos teólogos cristãos não estavam preocupados com a internet, e hoje ela ocupa tanto espaço em nosso meio que é difícil não levá-la em consideração.

Mas, talvez, a importância do estudo dessas novas tecnologias resida exatamente na ameaça que elas possam representar à fé cristã. Nas palavras de Jonathan Merrit: “A inteligência artificial — ou simplesmente IA — pode ser a maior ameaça à teologia cristã desde “A origem das espécies”, de Charles Darwin”[2].

Por ora, a minha provocação é exatamente sobre a Inteligência Artificial. Creio que esta seja a inovação mais considerável dos últimos tempos, e o mundo será remodelado por ela, provocando mudanças notáveis em todas as áreas de nossas vidas. Depois dos sites de buscas e compras on-line, a IA está recebendo aplicações mais sérias na área da robótica. Ela está presente na indústria, no comércio e nas atividades cotidianas. Mais de 8 milhões de famílias — americanas, em sua maioria — já tem um dispositivo doméstico de assistência virtual que utiliza a inteligência artificial, apontou reportagem da revista Veja[3].

O grande diferencial da IA — termo cunhado em 1955 por John McCarthy — é a sua capacidade de aprender e desenvolver de maneira autônoma novas formas de raciocínio. “Nos últimos cinco anos houve uma evolução brutal das tecnologias de IA, a ponto de podermos dizer que, hoje, softwares desse tipo conseguem literalmente olhar o mundo e aprender com o que observam”, disse o cientista da computação americano Jeff Dean. Em pouco tempo, a inteligência artificial ocupará boa parte as atividades hoje executadas pelo ser humano. Estima-se que, nas próximas décadas, 70% das atuais profissões serão desempenhadas por robôs, ou seja, sete de cada dez tipos de emprego[4]. O que sobraria? Trabalhos que exijam capacidades lúdicas, emotivas, de análise, que, em teoria, ainda não são exclusivamente humanas[5]. Portanto, teólogos racionalistas que se cuidem…

Uma das primeiras preocupações da teologia com a IA é se ela tem uma alma. Esse é o questionamento de Jonathan Merrit em seu artigo “A inteligência artificial é uma ameaça ao cristianismo?”. Ele cita Mike McHargue, que se descreve como um místico cristão e autor do livro “Finding God in the Waves: How I Lost my Faith and Found it Again Through Science [Encontrando Deus nas ondas: como perdi minha fé e a encontrei novamente via ciência, sem tradução ao português], o qual crê que a ascensão da IA irá dissipar as ambiguidades na forma como muitos cristãos definem termos como “consciência” e “alma”.

Segundo McHargue, “as pessoas em contextos religiosos não sabem exatamente o que é uma alma”. “Nós a entendemos como uma essência não física de um indivíduo que não é dependente nem vincula-se ao corpo. Será que a IA vai ter uma alma segundo esta definição?”

Ao lembrar a fertilização in vitro e a clonagem genética, McHargue assevera que “a vida inteligente é criada por seres humanos em cada um desses casos, mas se presume que muitos cristãos concordarão que estes seres possuem alma. “Se temos uma alma e criamos uma cópia física de nós mesmos, supomos que a cópia física também tenha uma alma”, afirma McHargue. “Mas se aprendermos a codificar digitalmente o cérebro humano, então a IA será uma versão digital de nós próprios. Se criarmos uma cópia digital, essa cópia também terá uma alma?”.

A partir disso, Merrit questiona: “Se estivermos dispostos a seguir nessa linha de raciocínio, os desafios tecnológicos mostrar-se-ão abundantes. Se máquinas artificialmente inteligentes têm uma alma, terão elas a capacidade de estabelecer uma relação com Deus? A Bíblia ensina que a morte de Jesus redimiu “todas as coisas” na criação e tornou possível a reconciliação com Deus. Então Jesus morreu pela inteligência artificial também? A IA pode ser “salva”?

A esse questionamento, Christopher Benek, pastor da Providence Presbyterian Church, igreja na Flórida, respondeu: “Não acho que a redenção de Cristo se limite aos seres humanos”. “É uma redenção a toda a criação, inclusive para a IA. Se a IA for autônoma, então devemos incentivá-la a participar dos propósitos redentores de Cristo no mundo”.

Obviamente, trata-se de uma construção absurda! Afinal, Deus criou pessoas à sua imagem e semelhança (Gn 1.26), de modo que a Imago Dei está presente no ser humano, não em qualquer outra parte da criação, seja nos animais ou em um algoritmo elaborado pelo homem, por mais superinteligente que seja. Igualmente, a redenção em Cristo se estende ao ser humano caído (Jo 3.16), e não a um sistema informatizado. Todavia, esse é o tipo de questionamento que a teologia cristã terá de enfrentar daqui por diante.

Ainda que este primeiro aspecto não pareça plausível, há outro ponto sobre a IA que chama a atenção e merece maior cuidado da nossa parte. Refiro-me à utilização da inteligência artificial na área da hermenêutica.

Em nossos dias isso é feito na área jurídica. O Banco JP Morgan, maior banco dos Estados Unidos, vem investindo incisivamente no desenvolvimento de novas tecnologias e já possui um “robô”, baseado em uma rede particular, chamado COI (Contract Intelligence), que interpreta acordos de empréstimo comercial e analisa acordos financeiros[6]. Em 2016, foi lançado o Ross, o “advogado-inteligência-artificial”, ou “robô-advogado”. O ROSS pode processar, em apenas um segundo, 500 gigabytes, o equivalente a um milhão de livros[7].

Não é mera automação. Estes robôs dispõem de uma nova técnica de processo de linguagem, que analisa documentos e legislação. A inteligência artificial é capaz de compreender o real sentido das palavras, ou seja, estes algoritmos fazem um trabalho hermenêutico.

E isso nos leva à hermenêutica cristã. Será que a IA poderia ser utilizada para interpretar as Escrituras?

A resposta a esta pergunta depende da maneira como encaramos a natureza da própria hermenêutica –a reflexão sobre os princípios que corroboram a intepretação textual correta. Se a considerarmos como mero instrumento de codificação de símbolos e análises semânticas regidas pela razão, então a resposta seria positiva. Todavia, se a compreendermos como uma atitude espiritual de compreensão e aplicação do Texto Sagrado, que está além do significado direto das palavras, então os algoritmos não sãosuficientes para uma hermenêutica bíblica — pelo menos aquela que acredita na sobrenaturalidade.

Obviamente, a inteligência artificial ajuda na compreensão do sentido das palavras, da histórica do texto bíblico e do seu contexto maior. Recentemente, por exemplo, professores da universidade de Tel Aviv, matemáticos e arqueólogos, usaram softwares baseados em IA para analisar a alfabetização nos tempos antigos. As novas ferramentas e técnicas de processamento de imagens puderam comparar e contrastar as formas dos antigos caracteres hebreus. Assim, identificaram caligrafias diferentes. Concluiu-se que a capacidade de ler e escrever era comum no reino de Judá e isso facilitou a posterior compilação dos textos bíblicos[8].

Esse tipo de software tem importante finalidade, mas certamente não substitui a hermenêutica humana, a quem se destina a revelação divina. Talvez, aqueles que resumem a tarefa interpretativa das Escrituras aos aspectos históricos e gramaticais se sintam satisfeitos com os novos algoritmos. É bem possível que o racionalismo protestante e a teologia científica apreciem bastante essas novas ferramentas de inteligência artificial.

Por outro lado, a racionalidade artificial não é suficiente para aqueles que acreditam que a hermenêutica bíblica se submete à revelação divina. Tomo emprestadas aqui as palavras de Paul Ricoeur : “o ato de ler ou de compreender a expressão simbólica de um texto é um momento de autocompreensão, a experiência plena do significado no ato de ler permite-nos que nos elevemos acima de nossa finitude” [9]. Nesse sentido, a IA não é suficiente para o pentecostalismo, pois como lembrou César Moisés de Carvalho, “(…) os pentecostais, somos da opinião que a ‘Bíblia permanecerá em grande parte irrelevante se o Deus de quem ela fala não se revelar aos seres humanos no próprio tempo e espaço deles”[10]. Assim o é porque a Bíblia não é uma lei ou código normativo qualquer, cuja compreensão seja acessada pelo intelecto puramente. É a Palavra viva, eficaz (Hb 4.12) e inspirada de Deus (2 Tm 3.16), e o seu entendimento é alcançado mediante a revelação do Espírito.

A história da intepretação bíblica geralmente destaca dois componentes: Palavra e Espírito. Boa parte da discussão hermenêutica gira em torno da forma como estes se interligam, entre objetividade e subjetividade. Segundo Kevin Vanhoozer é preciso ter em mente o efeito perlocucionário das Escrituras, ou seja, a sua missão de transmitir uma dada mensagem, com o propósito de cumprir a finalidade para a qual foi enviada (Is 55.11). De maneira semelhante, diz Vanhoozer, “a Palavra de Deus na Escritura possui uma missão, e isso, por sua vez, determina a missão do Espírito”, no sentido de conduzir a comunidade interpretativa de cristãos.

Nesse aspecto, a passagem de Atos 2 ganha proeminência. Kevin Vanhoozer ressalta que esta passagem é uma verdadeira “festa interpretativa”, situação que envolveu receber o espírito e também as Escrituras. No episódio, Pedro declara que ‘isto’ (o evento de Pentecoste) é ‘aquilo’ (O significado da profecia de Joel). Tal interpretação, diz Vanhoozer, “não é apenas a projeção humana de Pedro, mas um produto da orientação do Espírito. No entanto, apenas o fato de compartilhar da vida da comunidade de crente é que permitiu a Pedro ver ‘isto’ e ‘aquilo’”[11]. Igualmente, é possível afirmar, segundo Vanhoozer, que “Paulo leu a Escritura à luz de sua experiência do Espírito, e não vice-versa”. Para ele, “Apenas uma leitura devota que evoque o Espírito pode perceber o verdadeiro significado naquilo que, de outra forma, é uma letra morta. Essa exegese conduzida pelo Espírito ‘restaura a atividade interpretativa da comunidade espiritual como o e elo conector entre o texto e o leitor”[12].

Embora não seja um teólogo pentecostal, Vanhoozer destacou dois aspectos essenciais na tarefa interpretativa: experiência e orientação do Espírito Santo. Em nenhum desses casos a inteligência artificial é capaz de substituí-los. Algoritmos, afinal, não proporcionam experiências com Deus. Ao falar sobre a teologia paulina, o teólogo pentecostal Gordon Fee assinalou que “não basta reunir todas as passagens e compará-las com algum conjunto de pressuposições doutrinárias, pois, no caso do Espírito, estamos lidando com a questão da experiência primitiva cristã”[13]. No final das contas, prossegue Fee, “a única teologia que importa é que se traduz em vida”.

Em perspectiva similar, Bernardo Campos destaca que a exegese, o processo de extrair o sentido de um texto, “sem a experiência que a motive, é simplesmente uma leitura técnica, como feita por uma máquina ou um literato bem informado”. Uma leitura sem sentido específico para o intérprete” [14]. Assim, “o estudo científico da Bíblia é necessário, porém não é suficiente. Necessitamos interpretar com o Espírito para encontrar seu sentido profundo e imediato para nós”[15].

Realmente, a inteligência artificial, criada a partir de algoritmos, não é capaz de proporcional a adequada interpretação das Escrituras. Isso porque, além do sentido das palavras e da compreensão do contexto em que o texto foi escrito, precisamos da vivência e da orientação do Espírito para compreender a revelação nas Escrituras. Apesar disso, muitos teólogos cristãos insistem nalgum tipo de hermenêutica robotizada, não feita a partir de algoritmos, mas baseada puramente no intelecto e na racionalidade humana.

Valmir Nascimento

Notas e Referências:

[1] Revista Exame, 13 de setembro de 2017, p. 37.

[2] MERRIT, Jonathan. A inteligência artificial é uma ameaça ao cristianismo?. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/565375-a-inteligencia-artificial-e-uma-ameaca-ao-cristianismo.

[3] Revista Veja, edição 2549, 27 de setembro de 2017.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] JPMorgan Software Does in Seconds What Took Lawyers 360,000 Hours. Disponível em:<https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-02-28/jpmorgan-marshals-an-army-of-developers-to-automate-high-finance>.

[7] Escritório de advocacia estreia primeiro “robô-advogado” nos EUA. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mai-16/escritorio-advocacia-estreia-primeiro-robo-advogado-eua

[8] Disponível em: https://noticias.gospelprime.com.br/inteligencia-artificial-origens-biblia/

[9] RICOEUR, Paul. Citado em: VANHOOZER, Kevin. Há algum significado neste texto. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 11.

[10] CARVALHO, Cesar Moisés. Pentecostalismo e pós-modernidade. Rio de Janeiro: 2017, p. 355.

[11] VANHOOZER, p. 483.

[12] Idem.

[13] FEE, Gordon. Paulo, o Espírito e o povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 20.

[14] CAMPOS, Bernardo. Hermenéutica del Espiritu. Salem Oregon: Kerigma Publicações, 2016, p. 32

[15] Idem.

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Valmir Nascimento
Cultura e Teologia

Doutorando em Filosofia, Mestre em Teologia, Graduado em Direito. Escritor, professor e conferencista. Conselheiro do Inst. Bras. Direito e Religião.