O Rosto de Deus e nossos inimigos

Valmir Nascimento
Cultura e Teologia
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3 min readNov 3, 2021

Há uma questão intrigante no episódio bíblico em que Jacó encontra com seu irmão Esaú. Após ter deixado a casa de seu pai, temendo ser morto pelo irmão mais velho, por ter enganado Isaque e roubado o direito de primogenitura de Esaú, e ainda recebido a benção do seu genitor (Gn 27.36), Jacó temia o pior quando reencontrasse com o seu inimigo íntimo (Gn 32).

Na mente de Jacó, seu irmão ainda estaria ressentido e havia de cumprir a promessa de tirar-lhe a vida. O medo da vingança e a expectativa da retaliação pesavam sobre a sua alma. Mas Jacó não é o mesmo da sua juventude. Após ter sentido o gosto amargo da malandragem, defraudado por seu sogro Labão; ter experimentado a responsabilidade de ser um pai de família, e principalmente depois de ter lutado com Deus em Jaboque, Jacó agora é outra pessoa. Chama-se Israel, o homem que lutou com Deus!

Ainda assim, receava uma represália de Esaú, e por isso lhe enviou antecipadamente alguns presentes, para ver se de algum modo abrandaria o furor de seu irmão. Mas a expectativa de vingança é logo desfeita quando os dois se encontram. A Bíblia diz que Esaú correu ao encontro de Jacó e abraçou-se ao seu pescoço, e o beijou. E eles choraram (Gn 33.4). O abraço, o beijo e o choro jogam por terra anos de remorso e desfaz o medo da retaliação.

Depois de experimentar a inimaginável reação afetuosa de seu irmão, e a sua recusa em receber os presentes ofertados, Jacó insiste: Peço-te que tomes o meu presente da minha mão, porquanto tenho visto o teu rosto, como se tivesse visto o rosto de Deus; e tomaste contentamento em mim (Gn 33.10).

É surpreendente que Jacó declare ter visto o rosto de Deus na face daquele que considerava ser seu inimigo. Este reconhecimento ocorre primeiramente porque o rosto não corresponde somente a uma parte da anatomia do corpo humano, mas principalmente à própria expressão da subjetividade do indivíduo que irradia o que há de mais profundo em si. A pessoa não é [somente] o seu rosto, dizia Roger Scruton em seu livro O Rosto de Deus; mas também não somos uma alma clandestina, escondida atrás da carne como um palhaço atrás de uma maquiagem (p. 113). Embora as pessoas sejam capazes de maquiar sentimentos, emoções e intentos, desejos e reações autênticas são difíceis de serem falseadas. O sorriso, sincero, por exemplo, mostra quem realmente somos. Por isso, Scruton afirma que “sorrir é um jeito de estar presente no rosto” (p. 117).

É possível que Jacó tenha visto o rosto de Deus em Esaú em virtude de uma manifestação sincera de alegria pelo reencontro; não um riso cínico de alguém que aguardou por anos um momento de revanche.

Também, Jacó vislumbrou o rosto de Deus em seu irmão porque sabia que o perdão e a reconciliação não poderiam ser praticados somente pela natureza humana. Somente Deus poderia produzir algo assim. A religião, escreveu Scruton, “começa na experiência da comunidade e no desejo de nos reconciliar com aqueles que nos julgam e de cujo amor dependemos” (p. 204). Para Jacó, a expressão de benevolência de seu irmão, esquecendo do que havia acontecido no passado, era algo sagrado que apontava diretamente para Deus.

Jacó viu o rosto de Deus em Esaú em virtude da reconciliação, mas isso também somente ocorreu porque a própria visão de Jacó havia mudado, após seu encontro com Deus no Vale de Jaboque. Somente conseguimos ver o rosto de Deus no outro após termos visto a Deus!

A verdadeira religião cristã, diferentemente de alguns hinos e pregações contemporâneas, procura olhar o outro em busca do rosto de Deus, e não a face do Adversário. O perdão, o reencontro e a reconciliação somente são possíveis pela graça divina que se manifesta onde menos esperamos.

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Valmir Nascimento
Cultura e Teologia

Doutorando em Filosofia, Mestre em Teologia, Graduado em Direito. Escritor, professor e conferencista. Conselheiro do Inst. Bras. Direito e Religião.