Não ser bom pra nada — Mark Fisher, saúde mental e o realismo capitalista

Valter Nascimento
Blog do Valter

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Num artigo publicado em 2014 chamado Good for nothing, Mark Fisher tocou num ponto delicado: o sentimento de não ser bom pra nada. A ideia de que não somos merecedores ou de que estamos no lugar errado ao longo de toda a vida.

Fisher, que veio de uma família turbulenta e teve uma vida cheia de descaminhos, terminou se tornando um exemplo triste. Dono de um pensamento cheio de originalidade e autor de livros potentes (Realismo capitalista saiu no Brasil pela editora Autonomia Literária), o autor não superou suas crises depressivas e se matou em 2017.

Em seu artigo de 2014 , Fisher já falava sobre a falta da “confiança serena de quem nasceu para o papel.” Uma sensação permanente de que há algo de errado com o seu encaixe no mundo. Compartilho do mesmo sentimento de Fisher. Vim de uma família pobre, comecei a trabalhar cedo, me formei tarde e nunca abandonei o sentimento de estar sempre no lugar errado. Fisher fala ao longo de sua obra da dominação permanente que a pobreza ou o estresse social causam em nós. Um medo constante de que fiquemos na pior a qualquer momento, de que uma compra básica se torne uma dívida sem fim ou que não temos o pleno direito de tirar um dia de folga. Ter me tornado um adulto mais ou menos estável não apagou esse ‘treinamento para a desgraça’ imposto ao longo de anos .

Esse sentimento de desmerecimento, algo como uma voz nos dizendo “isso não é seu”, é o combustível para o surto de ansiedade e depressão que permeia nossas vidas. Fisher via a depressão como uma reação natural ao meio em que vivemos, um sintoma muito mais coletivo do que individual.

Sentados diante do psicoterapeuta, esses indivíduos fragmentados e exaustos, buscam em suas memórias e sentimentos os culpados por suas crises. Fisher, citando o trabalho ousado de David Smail, acha isso um erro. Ir ao terapeuta encontrar o que está errado com você desloca a culpa de lugar — do meio social para a sua psique. Você é culpado e libertador de suas dores, o único responsável por seus traumas e incapacidades, o único capaz de se autocurar através do esforço pessoal. A narrativa do capitalismo tardio de que o mundo está repleto de oportunidades incríveis para aqueles que sabem correr atrás se repete no divã do terapeuta.

Smail tem uma visão pouco romântica da psicoterapia:

“Precisamos entender que, mais do que o paciente ser um problema para o mundo, o mundo é um problema para o paciente. Somos os produtos corporificados do espaço-tempo. […]Não somos nós que temos que mudar, e sim o mundo à nossa volta. Ou, colocando de outra forma, a extensão em que podemos mudar sempre dependerá de alguma mudança material nas estruturas de poder que nos envolvem.”*

*A tradução da citação é do Rodrigo Pereira, autor de outro ótimo texto sobre Smail disponível aqui.

A psicoterapia pode ser apenas mais um mecanismo de domesticação dos indivíduos, que invés de culparem a sociedade, passam a culpar a si mesmos.

Se a sociedade cria para os seus indivíduos um ambiente hostil desde a infância, é natural que o indivíduo se sinta sempre ameaçado. A questão nem sempre é o pai ausente ou a mãe dominadora, mas o emprego de merda que fez o seu pai passar uma vida fora de casa e que levou sua mãe a um comportamento abusivamente protetor e a psicanálise nem sempre se esforça em orientar seus pacientes a uma visão mais crítica da sociedade como um todo.

Muitos depressivos e ansiosos saem dos consultórios realmente curados (ou quase), donos de uma certa felicidade (me incluo neste grupo), mas completamente incapazes de perceber que os mecanismos que disparam suas dores continuam invisíveis, mas ativos. Ter um emprego de merda, a falta de um sistema de saúde descente, a impossibilidade de se aprimorar pessoal ou profissionalmente, a competitividade por produtividade, as relações baseadas em consumo, a urgência por um corpo perfeito, tudo isso continua e continuará a lhe atormentar. Você pode se manter estável apenas por um certo tempo, pois continua sendo ameaçado por grupos financeiros que mudam a lógica do mercado em nome do lucro, governos que negociam sobre a morte de milhares durante a pandemia, pela desvalorização da sua mão de obra em nome de novas tecnologias, pela uberização do trabalho, pelo aquecimento global, pela comida ultraprocessada, pelo excesso de informação e manipulação de dados, pelo controle emocional e as bolhas digitais promovidas por empresas como Facebook e Google — a lista é grande e cresce a cada dia.

Em resumo: você não está tendo uma crise de ansiedade ou um quadro depressivo porque é uma pessoa “nervosa demais”, ou “triste demais”, mas porque está sendo constantemente lançado em dinâmicas sociais desgastantes, sem significado, nas quais os seus desejos humanos básicos e necessidades genuínas de bem-estar e felicidade são descartados sistematicamente em nome de um salário que não permitirá que você morra de fome, mas tampouco lhe dará condições para ter uma vida florescente.

Em boa parte de sua história, tanto a psicanálise quanto a psiquiatria falharam miseravelmente em se unir numa crítica contra as dominações vindas das estruturas sociais. A psicoterapia se tornou, especialmente hoje, na arte do conforto e não do confronto. Pacientes querem ouvir que vão ficar bem e psicoterapeutas querem dizer que sim, tudo vai ficar bem.

O indivíduo continua a ser orientado a achar as respostas dentro de si, e não fora. Os que culpam a sociedade ou o capitalismo são vistos como fracos, preguiçosos ou incapazes de mudar a si mesmos. Como bem disse Fisher:

“Os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais; estruturas essas que, em todo caso, foram induzidos a acreditar que de fato não existem (são apenas desculpas invocadas pelos fracos).”

Sou um grande defensor e praticante da psicoterapia, mas entendo que fazer terapia, ler Lacan e meditar não adianta nada se você não tiver consciência de classe. Se sentar diante de um terapeuta durante uma hora uma vez por semana não resolve o fato de que vivemos numa sociedade hostil e projetada para causar sofrimento ininterrupto e que esse sofrimento é posto em cena em nome do lucro. O medo que muitas pessoas têm passa pela ideia de que o capitalismo é grande demais para ser questionado. É melhor eu tomar minha dose de Desvelaxina, me esforçar um pouco mais e ir fazer concurso público.

Perceber que boa parte dos seus problemas mentais são um subproduto do capitalismo tardio é paralisante. Há muito mais chances que eu tenha déficits de atenção por conta do uso de redes sociais do que por problemas químicos ou hormonais. Há mais chances de eu ter crises de pânico desencadeadas pelo subemprego do que por questões genéticas. Não faz sentido que vivamos eternamente olhando para os nossos genes, nosso inconsciente e nosso comportamento em busca de falhas quando os gatilhos para esses problemas estão no ambiente social em que vivemos. Essa cegueira social impede os indivíduos de verem a realidade tal qual ela é.

A solução? Mark Fisher sugere que o descontentamento privatizado seja convertido em raiva politizada, mas isso não é simples e depende de muitas coisas. Consciência de classe, solidariedade (uma forma de se revoltar contra a sociedade é acolhendo quem também é trucidado por ela), criar coisas contra as quais o capitalismo tardio não tem poder como a arte, a política humanista, a filosofia — eis alguns caminhos.

Me parece ser cada vez mais urgente converter nossa revolta em uma força apontada para fora. Entender que não estamos sozinhos também ajuda, mas o caminho é sempre longo.

A segunda edição do meu livro de contos, “O coração de um animal assustado” (2023. 112 páginas. Editora Levante), já está disponível. Apoie meu trabalho e garanta sua cópia autografada e com um marcador de páginas exclusivo:

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