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Como ter menos foco e ser cada vez mais menos produtivo

Valter Nascimento
Blog do Valter
Published in
4 min readDec 21, 2021

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“Conhece-te a ti mesmo”, era a frase posta na entrada do templo de Apolo em Delfos. Pois é, eu tentei, todo mundo tentou. Todo mundo está tentando desde então e olha só, não tá funcionando.

Estou indo ao terapeuta, lendo Kierkegaard, meditando, ouvindo new age music, caminhando e nada. Malhando, fazendo dieta, definindo minha posição dentro do espectro político e vendo filmes coreanos. Nada. Se autoconhecer é cansativo, caro e superestimado.

Conhecer a si mesmo tem nos levado aos piores lugares. Que vida desgraçada leva quem vive cortando a realidade com a faca cega do autoconhecimento. A certeza inabalável criada por uma personalidade sólida tem transformado o mundo num show de horrores. O inferno, tenho certeza, está repleto de gente centrada e incapaz de contradições.

O culto à personalidade é uma das maiores mentiras de todos os tempos. Fulano tem muita personalidade, Fulano não tem. Vejam bem, personalidade não existe, é algo como uma duna, move-se no vento, muda de tempos em tempos, de choque em choque, de erro em erro. Ser uma pessoa de personalidade é sinônimo apenas que você acompanha a maioria, que repete o que todo mundo já disse, que faz tudo o que todo mundo já fez. Não tem nada de novo nem de especial nisso.

Aquilo que não conhecemos sobre nós mesmos é o que nos faz de verdade. Não se conhecer é estar sempre diante de enigma interessante, é como descobrir um cômodo novo em sua casa, repleto de coisas malucas e por isso mesmo essenciais.

Talvez o que há para se conhecer esteja fora e não dentro da gente. O que há dentro da gente todo mundo sabe: traumas familiares, culpa cristã, vontade de dormir até tarde, desejos de comer um pudim inteiro e de mandar áudios de mais de 1 minuto. O resto é bijuteria. Filosofia, arte e poesia são molduras elegantes para um mundo interior repleto de dúvidas corrosivas.

Depois que parei de passar minhas roupas me tornei convicto de que estou na direção de um completo processo de autodesconhecimento. Comecei a desconhecer tudo o que sabia, já estou desaprendendo várias coisas e, se tudo der certo, em breve também irei perder completamente o equilíbrio de mim mesmo. Estou tentando me tornar menos focado e trabalhando diariamente para me ser cada vez mais menos produtivo e menos sociável. Estou me afastando de toda positividade e mergulhando de cabeça em sentimentos amorfos como a preguiça, a procrastinação e a desaforança. Estou comprando brigas inúteis, iniciando projetos que não irei terminar e lendo mais de um livro por vez — algumas vezes só os primeiros capítulos ou frases soltas. Estou abandonando a linearidade. Também estou encontrando tempo para a prática da desmeditação — tiro um momento do dia para pensar em tudo ao mesmo tempo e tento encher a minha mente com a maior quantidade possível de pensamentos caóticos e desarticulados.

Que seja dito: não tem nenhuma lição escondida no mundo, não tem nenhuma versão melhor de mim mesmo encafifada no meu subconsciente. Não há um propósito em tudo, o propósito da atual conjuntura é sobreviver. É não ser enviado numa cova, não ser esmagado pelo rolo compressor do capitalismo. Não existe uma mensagem edificante que faz tudo ter um sentido. Não estamos evoluindo, apenas estamos.

Eu não quero ser uma pessoa melhor, eu não estou me tratando, eu não quero me desculpar com ninguém, nem quero distribuir amor a todos ao meu redor. Vamos parar de besuntar amor nas pessoas, esse tanto de amor não solicitado tem causado um efeito reverso. Se tudo é amor, nada é amor. Nem todo mundo merece amor, o amor é um troço muito fino pra ser dado como se fosse bom dia.

Nem quero ser o mais esforçado, o mais estudioso ou o mais produtivo. Vou me dedicar a fazer cada vez menos esforço, estudar apenas o que me mantem curioso. Vou pular a parte chata de tudo, vou misturar temas díspares e me tornar um especialista em coisa nenhuma. Vou usar todo o meu tempo ocioso para isso mesmo, a ociosidade. Bartleby estava certo. Sendo um exemplo de produtividade ou um preguiçoso lazarento eu sempre terei boletos para pagar, sempre terei responsabilidades impreteríveis, então, que eu viva no moedor do capitalismo tardio com alguma graça, alguma petulância e alguma imprudência.

Quando tudo é positivo, nada é positivo. Quando tudo é igual e perfeito, quando todos os ideais de personalidade almejam as mesmas coisas — sucesso, beleza, status, um pau grande, um iPhone novo — , não há nenhuma realização de fato. Se todos querem ser a mesma coisa é sinal de que não há nada mais para se querer ser. Ser nada de relevante é o novo trend.

Esses dias um amigo me orientou a sempre praticar o Overgiving, ou seja, sempre entregar um pouco além do combinado, seja na vida pessoal ou no trabalho.

Nada disso. Tô servindo no banquete da vida um PF basicão, com arroz, feijão, batata frita, bife e saladinha. E tá ótimo. É o que tem pra hoje. Gratidão.

A segunda edição do meu livro de contos, “O coração de um animal assustado” (2023. 112 páginas. Editora Levante), já está disponível. Apoie meu trabalho e garanta sua cópia autografada e com um marcador de páginas exclusivo:

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