Em busca de Macedônio

Valter Nascimento
Blog do Valter
Published in
4 min readApr 28, 2022

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Photo by Daniel Álvasd on Unsplash

Foi Ricardo Piglia, em Formas Breves, quem me apresentou Macedônio Fernández. Apesar de ter influenciado Borges, Casares e Cortázar, muita gente na Argentina pensa que Macedônio nunca existiu, tamanha a desinformação e absurdos sobre sua biografia. Fiquei encucado com a história e fui atrás de algum livro seu.

No Brasil há bem pouca coisa sua em catálogo e o mais famoso de seus livros, O Museu do Romance da Eterna, anda por volta de mais de 350 paus numa edição da falecida Cosac. Encontrei num sebo online um livro seu de crônicas chamado Tudo e Nada. O preço era bom e vendedor era de BH. Lá fui eu buscar o meliante.

O sebo ficava na rua São Paulo, no miolo do caos apocalíptico que é o centro de Belo Horizonte. A loja de uma porta só era mistura de sebo e mercado de pulgas. Peças para liquidificador, capinhas para celular, máscaras com o emblema do Atlético e do Cruzeiro, meias, carteiras, revistas velhas. Entrei. O corredor abarrotado de livros sem ordem dava a entender que o dono não era do ramo. Talvez um dia alguém deixou um monte de livros ali e a coisa foi perdendo o controle, ou ainda, quem sabe, tivesse o dono comprado a loja de algum livreiro falido e achou por bem colocar o estoque na internet por preço de banana.

Chamei. Ninguém veio. No fundo da loja um balcão abarrotado de trecos: fornos de micro-ondas partidos ao meio, um processador de alimentos Walita com as lâminas tortas, um computador antigo com a carcaça amarelada, daqueles de quando a linha da web acendia só depois da meia noite. Chamei novamente e percebi que acima do balcão havia uma escadinha, dessas de ferro em caracol, que dava num mezanino. Fiquei ali correndo os olhos nas lombadas, catando um ou outro nome interessante, mas a coleção era pobre, repleta de romances baratos, livros de relacionamento e aquelas coleções da Abril com os grandes nomes da filosofia mundial em capa azul — coleção essa que se prolifera mesmo tendo a editora falido há tempos.

Foi quando ouvi um barulho típico de foda. Um gemido feminino bem fino e forte e um arfar de respiração masculina. Som de coisa batendo na coisa. Você sabe, aquele som. Pensei em sair e deixar os amantes em seu trabalho, mas eu queria muito comprar o Macedônio e matar a minha curiosidade sobre esse autor que viveu recluso e que gastou cinquenta anos escrevendo um romance. Queria saciar aquela vontade carnal de andar com um livro muito esperado dentro da bolsa até chegar em casa, deitar no sofá e lê-lo sem pressa. Queria experimentar a graça de ter achado um livro especial num lugar ordinário, uma pérola iluminada no caos da quinquilharia, momento esse que faz do leitor um desbravador. Mas o dono do sebo estava fodendo.

Apurei o olho nas estantes e pensei em deixar o dinheiro no balcão e ir andando bem rápido. Ou talvez, talvez, pegar o livro e sair sem pagar. Me ocorreu sim essa ideia, não vou negar. Ter um Macedônio Fernández roubado em minha estante seria um fetiche tão gostoso quanto foder no meio da tarde dentro de um sebo no centro de BH. Cada um com seus problemas. Mas a confusão era tanta, o barulho era tão alto, que comecei a ficar confuso e excitado, preenchido por uma vergonha que não era minha. Chamei novamente, agora mais forte, com a voz grave, voz de quem sabe que vocês estão fodendo aí em cima. O homem respondeu: “Já vou!” e nisso houve um silêncio e depois uma risada feminina e sussurros como quem diz “Continua”.

Veio descendo a escada um cara corpulento, muito branco, rosto suado, usando uma camisa amarrotada e sem nenhum constrangimento. Falei do livro e ele ficou um momento revirando os trecos sobre o balcão. Sua alma estava lá em cima. Depois veio a moça, magrinha, serelepe, risonha. Me deu bom dia (cinco da tarde) e ficou na porta. “Um momentinho que já te atendo”, disse o homem e foi ter com ela. Trocaram alguma saliva e ela saiu prendendo os cabelos num coque. Cruzou a São Paulo leve e feliz como só quem goza no meio da tarde é.

O homem foi recuperando a cor, voltou a si e ficou sério. Começou a olhar as estantes como impaciência e se eu fosse uma pessoa mais prudente teria deixado o livro pra lá. Mas Fiquei. Eu era parte daquilo também. “É esse?”, perguntou ele e confirmei. Paguei, agradeci e saí completamente constrangido, como se fora eu quem tivesse fodido com o dono do sebo. Já do outro lado da rua vi quando ele baixou as portas. Sua cara dava a entender que ele não tinha terminado o serviço. A moça voltaria? Duvido.

Peguei o Macedônio para ler diversas vezes. Não bateu. A escrita cheia de nove-horas e sem pé nem cabeça me caiu indigesta. Na certa a culpa é minha por ter cortado o barato dos dois. O coito interrompido continua ao redor do texto como uma maldição. Mas a parte boa é que toda vez que vejo a lombada de Tudo e Nada na minha estante, vejo também a mocinha atravessando a rua prendendo os cabelos num coque, dona de uma felicidade tão firme e transgressora que nada mais importa.

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