Foto: arte colagem do autor.

Ninguém aguenta mais criar conteúdo

Valter Nascimento
Blog do Valter
Published in
5 min readJul 31, 2022

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Publicado originalmente na newsletter Psicopompos — número 7.

Um vazio cheio de gente

Alguém no Twitter definiu assim as redes sociais atualmente. Embora a internet pareça cheia demais, ela nunca esteve tão vazia de sentido. Embora o nosso contato com outras pessoas se torne cada vez menor, a internet nunca esteve tão cheia de gente. É um paradoxo horrível e inexorável do qual ninguém, ou quase ninguém, consegue escapar.

Eu sei que esse assunto já foi revirado de cabo a rabo e que muita gente decidiu aceitar a internet como ela é. Reclamar da tecnologia parece sempre coisa de tiozão, de gente que prefere comprar vinil a baixar o Spotify, gente que ainda guarda DVD em casa. Mas o fato é que agora esse cansaço com a tecnologia pegou pelo pé também a geração Z. Pessoas nascidas de 2000 para cá já apresentam olheiras enormes e severo cansaço emocional quando o assunto são redes sociais e o tal conteúdo.

Não é por acaso. Se você tem vinte e poucos começou a usar a internet dentro dos moldes tóxicos criados pelo Facebook/Google. Orkut, ICQ e chat da UOL não fazem sentido para você. Estamos falando de uma geração naturalmente presa a rede móvel que não entende como era a vida nos tempos da internet discada e do celular Nokia. A internet para os jovens adultos também envelheceu como leite no deserto. Tudo está ficando velho rápido demais, só que agora não vemos surgir nada novo no horizonte. É como se a internet fosse cada vez mais cansativa e ultrapassada, mas essa agonia do conteúdo digital não culmina em morte. Estamos acessando diariamente um zumbi feito de pixels.

Gramsci nunca esteve tão certo: o velho está morrendo e o novo não pode nascer.

Estamos vendo, dia após dia, a repetição dos mesmos formatos, esperando a próxima grande coisa, o próximo novo produto, o novo modelo inovador, a nova revolução digital que não vem e que acho que não virá tão cedo. Google e Facebook são grandes demais para quebrar. São empresas detentoras de tanto capital tecnológico, de tantos dados privados e com tanta sede de comando que demorará um bom tempo até que uma brecha se abra na caixa preta que nos enfiaram.

Kate Eichhorn, autora livro “Content”, conta a história da foto mais curtida da história do Instagram: um ovo. A imagem postada em janeiro de 2019 foi criada com a ideia de ser mais popular que Kylie Jenner. E deu certo. Enquanto a modelo ostentava uma foto com 18 milhões de curtidas, o ovo solitário contabilizou a marca de 56 milhões de curtidas. Para Kate Eichhorn, o ovo do Instagram é um exemplo claro de conteúdo, um material digital que “pode circular apenas com o propósito de circular”. Um material que não diz nada, não representa nada, não consolida nenhuma ideia. Trocamos o capital cultural, termo cunhado por Pierre Bourdieu, pelo capital de conteúdo.

“Produtores culturais que, no passado, se concentravam em escrever livros, produzir filmes ou fazer arte, agora também devem gastar um tempo considerável produzindo (ou pagando alguém para produzir) conteúdo sobre si mesmos e seu trabalho.”- escreve Eichhorn.

Quase sempre a produção de conteúdo sobre um trabalho se torna maior que o próprio trabalho. É como encher tonéis sem fim com fotos, vídeos, stories, textos, dancinhas. A produção de conteúdo suplanta a produção cultural e tira de cena o que Bourdieu considerava como um dos principais caminhos para a autorrealização pessoal e social: o reconhecimento público de nossas habilidades culturais.

Ser uma pessoa ‘estudada’ é uma forma de capital cultural, mas não a única. É preciso pensar também em todos os bens simbólicos que nos colocam dentro de diferentes contextos de valor. Quando falamos do conteúdo para a internet falamos de uma massa disforme, depreendida do tempo e do espaço, sujeita ao esquecimento imediato ou a uma fama que pode custar sua sanidade mental. Não existe de fato uma troca cultural (o meu valor em face ao seu valor simbólico) porque o valor simbólico é algo irrelevante dentro das redes sociais.

Um exemplo que tenho é o de um amigo escritor:

Depois de dois anos escrevendo, revisando, diagramando e enviando seu texto para dezenas de editoras, o autor conseguiu ser publicado. Tão logo assinou o contrato o editor foi categórico: você precisa se dedicar a divulgar mais o seu livro nas redes sociais. O amigo autor, que nunca foi uma pessoa interessada em se promover, se viu preso numa maratona de lives, vídeos, stories sobre seu processo de escrita, fotos. Ele ainda teve seu livro enviado para influenciadores literários, que acostumados a Harry Potter acharam seu romance um tanto sem graça. Teve que responder perguntas sobre personagens e rebater críticas. Teve que lidar com um tipo de presença digital que esvaziou o sentido de seu trabalho. Ele não estava se promovendo, estava se justificando.

O valor simbólico de seu trabalho fora substituído por um “valor de conteúdo”. Ele poderia ser um ótimo autor, mas se não fosse um bom “criador de conteúdo”, nada feito. A editora iria deixar seus livros de lado e focar em outro autor mais “Instagramável”. O amigo me definiu a experiência como “um carrossel infernal”.

Ironicamente, um famoso criador de conteúdo andou recomendando um artigo meu em sua newsletter e muitos novos assinantes surgiram em minha rede. Gostaria de dizer a vocês que não caiam nessa. Não confiem em quem quer ensinar a “criar conteúdo de modo saudável”. Por mais fofo que seja, é mentira. É só uma forma de vender cursos, palestras e mais uma penca de quinquilharias digitais. Toda forma sistematizada de criar conteúdo será isso: um carrossel infernal girando cada vez mais rápido, mais rápido, mais rápido e mais rápido…

A segunda edição do meu livro de contos, “O coração de um animal assustado” (2023. 112 páginas. Editora Levante), já está disponível. Apoie meu trabalho e garanta sua cópia autografada e com um marcador de páginas exclusivo:

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