A era da política do espetáculo

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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17 min readNov 22, 2020
Retrato de Louis XIV, quando tinha 63 anos. Pintado por Hyacinthe Rigaud, em 1701 — Hydryphantidae, Public domain, via Wikimedia Commons

A política se tornou um grande espetáculo para arrebatar mentes e corações…

Luís XIV, o rei da França, tinha uma característica marcante, ele era um homem extremamente vaidoso. Quando quis fazer um novo retrato real, em 1701 aos 63 anos, contratou o pintor Hyacinthe Rigaude, famoso entre os aristocratas franceses por recriar as faces com precisão quase fotográfica. Luís era baixinho e gordinho, tinha 1,62cm e usava peruca e um salto alto para ganhar alguns centímetros.

Para esconder suas desvantagens físicas, Rigaude fez questão de pintá-lo mais esbelto e cobri-lo com uma capa e com robe. A única coisa que ficou à mostra foram suas pernas, elas eram seu maior orgulho. Para mantê-las em forma, fazia questão de exercitar seu corpo diariamente num claro sinal de que ele era a fonte do poder que emanava dos deuses. “O estado sou eu”, frase atribuída a ele, revelou como o poder absoluto era a marca do seu governo. Luís XIV personificou seu reino com maestria, além das perucas, roupas extravagantes e sapatos com saltos muito altos. Suas pernas , além de serem motivos de orgulho, tinham uma serventia especial — dançar.

Luís XIV conseguiu um feito heroico, manter o reino unido e sua cabeça colada ao corpo através da dança. Ele promovia bailes em Versailles, no qual toda a aristocracia era convidada e obrigada a se apresentar, como relata Gretchen Schmid: “Era uma verdade universalmente reconhecida que um homem ansiando por uma carreira política na França do século XVII precisava de um professor de dança. A habilidade de dançar era tanto uma sutileza social quanto uma necessidade política, a marca de nascença de uma educação aristocrática.”

Dançar se tornou um pré-requisito para ascender politicamente na corte do jovem rei. Luis XIV ascendeu ao trono com apenas 10 anos de idade, entretanto, só começou a reinar aos 14. Enquanto não era rei, Luís se preparava para reinar na arte do balé.

Luís XIV, foi um dançarino de balé desde a tenra idade, na realidade, quase nasceu dentro de um balé, pois seu nascimento foi comemorado com o Ballet de la Felicité em 1639. Ele fez sua estreia nos palcos aos 14 anos no Ballet de Cassandre, em 1651. Entretanto, seu grande debut artístico foi dois anos depois, em 1653 aos 15 anos, no Le Ballet de la Nuit, um espetáculo que durou 12 horas começando à noite e indo até o amanhecer. O show tinha cavalos, carruagens, monstros saindo das ondas. O ápice do espetáculo era a aparição de Luís, cheio de joias e coberto com penas de avestruz, como o deus do sol, Apolo. É dai que vem seu apelido Le Roi Soleil, o Rei Sol que através do brilho de seu olhar dissipa a escuridão do caos e traz a ordem para vencer a Noite.

No balé, através da coreografia, seus cortesãos eram obrigados a adorá-lo como deus, (o que ele, de fato, achava que era, seu segundo nome era Dieudonne, ou o presente de Deus). Foi ali, no palco, e não no campo de batalha, que seus súditos foram hipnotizados pela glória do rei Luís XIV. O espetáculo revelou a autoridade absoluta dentro e fora da pista de dança. Luís viria a repetir esse balé seis vezes no mesmo mês. A sacada genial de Louis XIV foi entender que o balé era mais do que mera dança, era uma moeda política valiosíssima que manteria seu país unido. Alan Sikes, comenta essa jogada do monarca: “o Rei Sol banhou sua corte sob essa luz e, assim, garantiu a estrutura ordenada da própria corte.”

Luis XIV como Apolo

Luis XIV demonstrava o seu poderio, não através de exércitos ou intrigas políticas, mas através da arte e da etiqueta. Para ter certeza que a aristocracia não se insurgisse e tentasse tomar o poder. Luís manteve os cortesãos em Versalhes sob sua mira e sempre ocupados. Pois suas regras de etiqueta eram tão elaboradas, como Schmid nos conta, que “Os nobres e as mulheres não sabiam onde ficar, como podiam entrar ou sair de uma sala e em que tipo de cadeira podiam sentar-se”. O nível de mando era tão grande que “a casa era dividida em alas elaboradas, e os habitantes se moviam entre elas em poltronas, que funcionavam como táxis internos.” Esse era o controle que Luis XIV submeteu seus aristocratas. Na realidade, Versalhes se tornou uma “uma prisão dourada, convocando nobres de suas propriedades distantes e forçando-os a permanecer na corte, onde poderia ficar de olho neles.”

Os balés, as etiquetas e os maneirismos mantiveram aliados e detratores bem ocupados, o que Schimid continua nos relatando:

A teoria de Luís XIV era que os nobres não poderiam derrubar o governo se estivessem ocupados demais cuidando de questões triviais de etiqueta. Se os nobres gastassem toda a sua energia tentando manter seu status, eles não teriam tempo ou capacidade para se levantar contra a monarquia. E a dança foi uma das muitas maneiras pelas quais Luís foi capaz de manter a nobreza em seu lugar.

Na realidade, a vida de Luis XIV se tornou um espetáculo e dessa forma, vida politica e atuação no espetáculo se tornaram uma coisa só. Luís construiu palcos temporários em Versalles, pois não haviam teatros na época, os espetáculos impressionávam os “dignitários estrangeiros e reforçaram a imagem de Luís como governante absoluto.”. O grau de exposição era tão grande que as pessoas observavam ele se levantar pela manhã e ir para a cama. Luís XIV corporificou o que viria a ser chamado muitos séculos depois de sociedade do espetáculo por Guy Debord.

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

Para Debord, a vida em sociedade estava empobrecida por haver se transformado em mera acumulação de imagens, no qual era mais fácil observar a realidade através das imagens, do que da própria realidade em si. Ele diz que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos.”. Ou seja, aquilo que era vivido na realidade concreta é transportado para o reino da representação, desta maneira, “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”. (id, 1997, p.13).

Os canais de propagação desse espetáculo são os meios de comunicação de massa, são eles que revelam a realidade-falsa, ou como posto por Debord:“o verdadeiro é um momento do falso”. O que ocorre é que os indivíduos, ao invés de quererem a realidade, preferem viver num mundo de aparências sendo alimentados pelo consumo constante de notícias, produtos e mercadorias. Sendo assim, é melhor viver em um eterno teatro de representações. Debord definiu que “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. Com a falta de autenticidade das relações humanas, no qual, todas as relações passam a ser mediadas pelas imagens, não mais pelas pessoas e pelos produtos concretos, elas entram em declínio, pois “ao mesmo tempo, toda a realidade individual se tornou social, diretamente dependente do poderio social, por ele moldada.”.

Em uma sociedade de consumo, o que se almeja não é ser, mas ter, na sociedade do espetáculo, o ter se transforma em parecer. Neste caso, os indivíduos se tornam imagens, sua essência não é mais importante, e o ter só é válido se parecer mais do que de fato se é. As imagens “tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico.” A conclusão disso é que, “O espetáculo é (…) o coração da irrealidade da sociedade real”. A contradição aparente se revela como realidade virtual. Tudo que existe deve existir como imagem, senão se torna inexistente e ignorável.

Aplicando esses conceitos à política atual, não “compramos” propostas ou ideologias políticas, mas temos uma “acumulação de espetáculos” sobrepostos, da mesma maneira que Luís XIV colocava todos seus cortesãos ocupados em como se portar nos balés de Versailles, todos nós estamos olhando para as imagens produzidas pelos políticos. Em suma, nosso fazer político se tornou um acumular de imagens e observações de espetáculos, nunca atingindo o cerne das questões, dos políticos e de suas ideologias.

A ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA

Walter Benjamin em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, faz nos dar um passo além do entendimento do espetáculo para Debord e vê o fascismo de sua época como aquele que dava voz ao homem comum e que estetizava a política, “O fascismo”, para Benjamin, “tenta organizar as massas proletárias recém-surgidas sem alterar as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir. Ele vê sua salvação no fato de permitir às massas a expressão de sua natureza, mas certamente não a dos seus direitos.” O fascismo foi capaz de fazer com que as pessoas comuns se vissem, não mais as elites estavam de frente às câmeras, ele prossegue: “Deve-se observar aqui, especialmente se pensarmos nas atualidades cinematográficas (…) a reprodução em massa corresponde de perto à reprodução das massas. Nos grandes desfiles, nos comícios gigantescos, nos espetáculos esportivos e guerreiros, todos captados pelos aparelhos de filmagem e gravação, a massa vê o seu próprio rosto.”.

O que Benjamim conseguiu observar como fato novo da politica contemporânea foi a valorização das massas, ou seja, o fascismo colocou pela primeira vez o homem comum no centro e esse pode ver-se. Mesmo que as massas tenham sido usadas na revolução bolchevique, e suas estratégias tenham muitas similaridades com as fascistas, Benjamin não fez essa comparação. Villela demonstra em seu artigo “Estetização da política” e “politização da arte” na URSS: Walter Benjamin e o movimento produtivista (1926–1936)” que:

No decênio de 1930, a “estetização da política” praticada pelo fascismo, calcada na representação da alegria, na apologia do trabalho e na celebração das forças produtivas, não era um fenômeno exclusivo da Itália fascista ou da Alemanha nazista. Também na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) o governo apoiava e difundia uma linguagem visual acrítica e apologética, baseada na celebração dos líderes e na representação das massas.

Além disso, nota Villela, que Benjamin, “desde 1926 (…) já estava a par da estética difundida na URSS pela Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR)”. Mesmo que não concordasse com suas práticas e seu “realismo heroico”, “Benjamin não tratou das similaridades entre as obras fascistas e soviéticas em “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica””. Mesmo que Benjamin não salientou a comparação de práticas dos regimes, sua análise é pertinente, ele prossegue:

Na época de Homero, a Humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos agora, ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-alienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como uni prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte.

Para Benjamim, a resposta contra a estetização da política seria a politização da arte. Nesse novo momento da política, a vida e os assuntos do cotidiano seriam concebidos como artísticos e por sua vez, a política deveria abraçar essa nova práxis. Na resposta à estetização da política como politização da arte, Benjamin não explica bem o que seria isso, mas Villela tenta nos dar uma resposta a isso:

Tal “politização da arte” aparece, pois, como uma espécie de projeto a ser formulado pelas forças comunistas para o combate do fascismo. O texto de Benjamin, então, inscreve-se como participante dessa tentativa de formulação. Existem no texto indícios do que seria tal projeto, presentes, por exemplo, na ideia de que a politização passaria pelo uso das técnicas modernas de reprodução e pelo dispositivo cinematográfico da montagem, objetivando combater a ilusão de unidade das obras fascistas, a estética contemplativa e o culto ao líder que elas promoviam

A politização da arte seria o uso dos mesmos mecanismos de comunicação em massa para destruir os símbolos e objetos tão caros ao fascismo, no entanto, o comunismo abraçou o mesmo senso estético do fascismo. Ou seja, em ambos os regimes foram usados essa nova arma para conquistar as massas que estavam esquecidas. Benjamin é claro sobre quais eram suas demandas, “a expropriação do capital cinematográfico é uma exigência prioritária do proletariado.” Benjamin analisando os desdobramentos da mídia de massa, consegue perceber qual revolução estava se desenhando, “Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o respeito de ser filmado”. Ele continua, “Hoje em dia, raros são os europeus inseridos no processo de trabalho que em princípio não tenham uma ocasião qualquer para publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação ou uma reportagem.” o produto final seria que “a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer.”.

Da mesma maneira, a politica estava se desdobrando para sua estetização, pois, “as massas têm o direito de exigir a mudança das relações de propriedade; o Fascismo permite que elas se exprimam conservando, ao mesmo tempo, essas relações. Ele desemboca, conseqüentemente, na estetização da vida política.” A promessa da estetização da politica é a expressão sem mudança concreta. Poder dar vazão aos sentimentos, seja de ódio ou amor, sem comprometer o estilo de vida e até melhorá-lo. Um mundo perfeito de direitos sem deveres.

Benjamin mostra como a comunicação em massa afetou o fazer político, ele diz que “A crise da democratização pode ser interpretada como utopia crise nas condições de exposição do político profissional.” O político antes se mostrava para um número pequeno de pessoas, mas “como as novas técnicas permitem ao orador ser ouvido e visto por um número ilimitado de pessoas, a exposição do político diante dos aparelhos passa ao primeiro plano.”. Desta maneira, ele escreve, “o rádio e o cinema não modificam apenas a função do intérprete profissional, mas também a função de quem se representa a si mesmo diante desses dois veículos de comunicação, como é o caso do político.” Com o advento das novas técnicas, o político não tem somente a responsabilidade de representar, no sentido de servir como representante às massas, mas também representar, no sentido de atuar pois “seu objetivo é tornar “mostráveis”, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controla-las e compreendê-las” , sendo assim, “esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeão, o astro e o ditador”.

O papel dos políticos contemporâneos é manter-se na superfície, ser raso e vago é mandatário para que a ilusão não esvaia por entre a realidade. Não ser é o que é válido. Pois somente projeção, nada concreto deve ser revelado. Ter um discurso que parece mostrar algo é mais aceito do que um discurso que afirma. A política entrou em uma espécie de câmara de eco, que somente repete discursos vazios, que alimentam de ar os seus iniciados. Em suma, a política se tornou espetáculo, não como o feito por Luís XIV, que encantava pela beleza, mas um espetáculo bruto e grosseiro, que não pode ser mostrado na grandiosidade dos palcos de Versailles, mas deve ser pequeno para caber nas telas dos smartphones. A política foi colocada no campo do imagético, não mais do discurso, desta maneira, a política se aparta da retórica e da beleza e entra na gritaria e no grotesco.

A REBELIÃO DAS MASSAS SEM PEITO

Ortega y Gasset conseguiu antever o fenômeno que iria marcar a política do séc. XX: A ascensão do homem médio ou, o que ele denomina de “rebelião das massas”. Ortega y Gasset escreveu “A Rebelião das Massas” na época que estava crescendo o fascismo na Itália e a Espanha “namorava” com a direita radical e os Bolcheviques já haviam tomado o poder na Rússia. Ortega y Gasset, observa que essas são revoluções das massas, as classes populares que nunca antes tinham sido ouvidas e agora tomavam decisões políticas. Aquilo que era somente papel da elite estava nas mãos do homem-massa. “Os indivíduos que integram estas multidões preexistiam, mas não como multidão”, aponta o filósofo espanhol, “Repartidos pelo mundo em pequenos grupos, ou solitários, levavam uma vida, pelo visto, divergente, dissociada, distante. Cada qual — indivíduo ou pequeno grupo — ocupava o lugar, talvez o seu, no campo, na aldeia, na vila, no bairro da grande cidade.” Essas multidões sempre existiram, só que agora, “A multidão, de repente, tornou-se visível, e instalou-se nos lugares preferentes da sociedade. Antes, se existia, passava inadvertida, ocupava o fundo do cenário social; agora adiantou-se até às gambiarras, ela é o personagem principal. Já não há protagonistas: só há coro.”

Esses homens médios, comuns, sempre existiram, mas agora são vistos, pois estão em posições de decisão. Eles estão postos como massa, que é “o homem médio”. A forma mais básica da humanidade, aquele “homem enquanto não se diferencia de outros homens, mas que repete em si um tipo genérico.”. Uma das características dessa massa, como descreve Ortega y Gasset, é atropelar “tudo que é diferente, egrégio, individual, qualificado e seleto. Quem não seja como todo o mundo, quem não pense como todo o mundo, corre o risco de ser eliminado.” Onde havia diferenças claras entre massa e minoria que pensavam diferente, nesse novo momento, entretanto, “todo o mundo é só a massa.”.

Agora, portanto, as decisões politicas estavam sendo tomadas pelo homem-massa. Esse seria o tipo de homem, descreve o filosofo espanhol, que “despojado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais”.(…) é apenas uma carcaça de homem constituído por meros idola fori; carece de um “dentro”, de uma intimidade sua, inexorável e inalienável, de um eu que não se possa revogar.”. C.S. Lewis, na Inglaterra, observa a mesma ascensão do tipo de homem que Ortega y Gasset havia detectado, ele o chama de “homem sem peito”. Esses Homens seriam aqueles guiados, da mesma maneira que o homem-massa, por suas emoções e apetites. Lewis coloca dessa maneira: “A cabeça governa os membros inferiores por meio do peito (…) de emoções organizadas pelo treinamento do hábito para ter sentimentos estáveis”. Se não há a intermediação do peito, entre a cabeça e a barriga, esse homem se torna “pelo intelecto ele é simples espírito e por seu apetite, mero animal.”. Ou seja, na concepção de Lewis, não era o intelecto que faltava, mas sim, peito. Esses homens deixaram de acreditar que valores tradicionais que perpassam todas as culturas, que podem ser vistas no Oriente ou no Ocidente, seja cristão, hindu, judeu, platônico e etc., o que Lewis chamou de “TAO”. Esses homens-sem-peito, creem que esses valores, não são mais importantes e abraçam um relativismo moral criado arbitrariamente por “especialistas”, isso faz com que, no final das contas, esses homens ao invés de terem sentimentos treinados e testados por hábitos, sejam guiados apenas por seus próprios apetites. Como conclui Lewis: “Não é o excesso de pensamento, mas uma carência de emoções férteis e generosas, que os marca. Suas cabeças não são maiores do que as ordinárias; é a atrofia do peito, que se situa abaixo, que os faz parecer assim.”. Desses “homens sem peito” se espera “virtude e a iniciativa. Zombamos da honra e ficamos chocados ao encontrar traidores em nosso meio. Nós os castramos e exigimos dos castrados que sejam frutíferos.”. Algo bem parecido escreve Ortega y Gasset, sobre as características do Homem-massa, “sempre em disponibilidade para fingir ser qualquer coisa. Tem só apetites, crê que só tem direitos e não crê que tem obrigações: é o homem sem nobreza que obriga — sine nobilitate — snob”.

Os dois autores conseguem enxergam bem o homem que surgiu após as mudanças do sec. XIX. Através dos avanços atingidos pela humanidade nesse século, como argumenta Ortega y Gasset, “as massas beneficiárias não a considerem como organização, mas como natureza.”. Achar que esses avanços são construídos naturalmente faz com que as massas, ao invés de ajudar a manter e proteger a civilização que as fizeram chegar a esse momento de bem-estar, “crêem que seu papel se reduz a exigi-las peremptoriamente, como se fossem direitos nativos. Nos motins que a escassez provoca soem as massas populares buscar pão, e o meio que empregam sói ser destruir as padarias.”. Lewis argumenta que se forem abandonados esses valores em detrimento de um TAO artificial, escolhidos pelos “manipuladores”, eles “adentrarão o vazio” o homem que acha ter conquistado a natureza, na realidade “não são sequer humanos; são artefatos. Lewis chega a conclusão que “a conquista final do Homem” revela-se como “a abolição do Homem”. Portanto, ao renunciar os valores e à própria civilização em troca de suas próprias motivações arbitrárias, os controladores dominarão outros homens, através do seus caprichos, não serão mais humanos e a Abolição do Homem terá sido concluída.

São esses homens que fariam política e assim a politica seria pautada a partir desses momentos, com uma aparência de que as massas estavam no controle, mas na realidade, são elites transvestidas de “homem comum” que governariam. Lewis acreditava que todas as ideologias políticas, seja comunismo, fascismo e até a democracia, estavam indo nessa direção:

O processo que, se correr solto, acabará na abolição do Homem, desenvolve-se em ritmo acelerado entre comunistas e democratas, não menos que entre os fascistas. Os métodos podem (a princípio) diferir quanto ao uso da força, mas muitos cientistas míopes, de óculos fundo de garrafa, muitos dramaturgos populares, muitos filósofos amadores no nosso meio querem, em longo prazo, dizer o mesmo que os governantes nazistas da Alemanha.

Lewis já observa o que experimentamos hoje em todos os campos, da moralidade à linguagem sendo modificados pela uma elite, por motivos arbitrários, ele continua:

Os valores tradicionais devem ser “depreciados”, e a humanidade, moldada em algum formato novo ao bel-prazer (que deve ser um prazer, hipoteticamente, arbitrário) de algumas poucas pessoas de sorte, de uma geração de sorte, que aprendeu a fazê-lo. A crença de que podemos inventar “ideologias” ao bel-prazer, e o tratamento consequente da humanidade como meros xyz, espécies, arranjos, começa a afetar até mesmo nossa linguagem.

A formulação da sociedade do espetáculo de Debord aplicado à política pelas lentes da estetização da política de Benjamin são válidas para que se possa compreender as manifestações políticas iniciadas no século XX e na contemporaneidade, onde o fazer político foi sendo transformado pelas novas mídias de massa, para que a política se tornasse um espetáculo de si e conseguisse cativar as massas de forma “estética” para manipulação.

A revolução das Massas e a Abolição do homem, de Ortega y Gasset e Lewis respetivamente, demonstram que tipo de homem surgiu depois dos avanços do sec. XIX: Uma massa que demanda todo tipo de direitos e se for necessário, destruirá a si próprio para atingi-los, entregando sua própria razão para regimes totalitários e populares que prometam dar-lhes o que queiram.

Isso foi o que Hitler, Stalin e Mussolini na época dos autores, conseguiram utilizar, mas também, foram usados na democracia por populistas, seja de direita como Trump e Bolsonaro ou de esquerda, como Lula, Chaves e outros. Foi esse anseio, para serem protagonistas na política, que as massas se levantaram para serem vistas nos seus representantes. As massas não queriam mais as elites, dentro de seus castelos, comandando os rumos políticos. Agora seriam “homens do povo”, termo caro aos populistas, para usarem como ferramenta de manipulação. fingir serem verdadeiros representantes da massa que queriam se ver. A política, de fato, entrou em uma sala de espelhos ou uma câmara de eco, que somente se ouve e se enxerga, não importando mais quais são as pautas e questões do dia. Não podemos culpar somente as mídias atuais, elas somente potencializaram um cenário que estava sendo construído desde o início do sec. XX. Os regimes autoritários seriam, na realidade, um governo-espetáculo e os governos populares que vieram depois, seriam somente a continuação desse governo-espetáculo que as mídias ajudaram a consolidar. Desta forma, transformando em uma falsa valorização das massas.

BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica(1955). Em:https://philarchive.org/archive/DIATAT

ORTEGA Y GASSET, Jose. A REBELIÃO DAS MASSAS. Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores (www.jahr.org).Em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000060.pdf

DEBORD, Guy. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO. Edição eletrônica: Coletivo Periferia. 2003.

LEWIS, C.S.. A ABOLIÇÃO DO HOMEM. Rio de Janeiro: Tomas Nelson, 2017

VILELA, Thyago Marão. “ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA” E “POLITIZAÇÃO DA ARTE” NA URSS: WALTER BENJAMIN E O MOVIMENTO PRODUTIVISTA (1926–1936). em: https://www.scielo.br/pdf/rh/n179/2316-9141-rh-179-a08418.pdf

DADOS SOBRE LUIS XIV:

SCHIMID, G.The Art of Power: How Louis XIV Ruled France … With Ballet. em: https://www.mentalfloss.com/article/93297/art-power-how-louis-xiv-ruled-france-ballet

SIKES, A. (2007) Dancing with the Sun King: The Performance of Privilege in the Reign of Louis XIV. In: Representation and Identity from Versailles to the Present. Palgrave Studies in Theatre and Performance History. Palgrave Macmillan, New York. https://doi.org/10.1057/9780230605619_2

https://www.hisour.com/pt/french-court-ballet-7863/

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2