A esquerda identitária: Os novos fariseus

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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8 min readDec 23, 2020
(photo from Thinkstock)

“Então, Jesus disse à multidão e aos seus discípulos: “Os mestres da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles lhes dizem. Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam. Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los. Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens.”(Mt.23.1–5a)

Jesus nunca foi contrário aos fariseus. Alguns estudiosos, como Thiessen, colocam Jesus com pautas muito parecidas com esse grupo. Ele afirma que “ambos querem santificar o cotidiano a luz de Deus”. Entretanto, fazem de forma diferente,“os fariseus representam uma noção defensiva de pureza. Desse modo, eles estão empenhados em evitar contaminação pela impureza. Jesus, ao contrário, defende uma noção ofensiva de pureza: não é a impureza, mas a pureza que contamina.” Ele prossegue: “A relação de Jesus com os fariseus é ambivalente: ao lado de uma grande afinidade nas convicções, encontramos um conflito básico; sinais de relações positivas estão ao lado de indícios de inimizade.”[1]

A enciclopédia Britannica informa que as interpretações da lei de Moisés, feitas pelos fariseus, poderiam ser “consideradas casuísticas porque acreditavam que deveriam encontrar interpretações que ajudassem todas as pessoas a guardar a lei.” Além de popularizar e tornar a prática da Torá acessível a todos, eles tinham uma esperança “escatológica: no dia em que Israel obedecesse à Torá, o Reino viria.” E o ponto de maior embate entre os fariseus e os saduceus, um outro grupo judaico, ligado à aristocracia e mais conservador, era que os “fariseus acreditavam na ressurreição dos mortos” e os saduceus, “não acreditavam na ressurreição porque não encontraram nenhuma enunciação de tal doutrina no Antigo Testamento.”[2]

Paulo, quando foi ouvido pelo Sinédrio em Jerusalém, diante de uma audiência de fariseus e saduceus, não teve medo em dizer “Sou fariseu, filho de fariseus, e por causa da ressureição dos mortos estou sendo julgado”(At.23.6). O apóstolo Paulo foi um fariseu até o fim da vida e não negava suas origens, em outra parte afirmou que foi “circuncidado no oitavo dia de vida, filho da descendência de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à Lei, fui fariseu”. Seu farisaísmo foi tão evidente que por causa do zelo, afirma: “persegui a Igreja; quanto à justiça que há na Lei, irrepreensível.”(Fp.3.5–6)

Como podemos ver, o grande problema de Jesus e dos apóstolos, não era com o movimento farisaico e seu zelo, rigor e popularização do ensino da Torá. O problema era sua demonstração de virtude. Esse era um mal que deveria ser combatido. Jesus resume bem qual era tipo de erro praticado pelo fariseus: “eles fazem tudo para serem vistos”. Se as ações desse grupo se tornaram um espetáculo de boas ações, logo elas não valiam de nada. Jesus, no sermão da montanha, nos adverte a dar esmolas sem que “ faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens” Pois, esse mestres da lei “já receberam o seu galardão.”(Mt. 6:2)

Nossas ações, pelo contrário, deveriam ser cegas a tal ponto que "não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” Pois, “teu Pai, que vê em secreto, ele mesmo te recompensará publicamente.” (Mt.6.3-4)

O antidoto à hipocrisia era saber que Deus, que tudo vê, nos recompensaria por nossas boas ações realizadas no secreto. Somente o beneficiário e o doador deveriam saber dessa boa-ação e Deus, como fiador máximo do segredo, guardaria até o final dos tempos, para que fosse revelado publicamente e o prêmio fosse alcançado.

OS NOVOS FARISEUS

Agora, nos afastemos dos fariseus do século 1 e aproximemo-nos dos novos fariseus, que estão em um era secular com uma audiência gigantesca para poder demonstrar todas as suas virtudes. O palco desses novos fariseus são as redes sociais, e tem no twitter seu maior expoente. Lá, eles podem ser bonzinhos, ter sua bondade vista por todos e ganhar muitos likes como recompensa. O twitter é o cenário ideal, pois é possível se engajar em qualquer tipo de luta somente apertando, ou melhor, deslizando seus dedos sobre uma tela. Além disso, poder julgar todos aqueles que não se envolvem ou deem notas favoráveis à qualquer luta que estiver em voga. O que há de mais confortável do que combater os males da sociedade de dentro do conforto de suas casas?

Os jovens identitários de esquerda são os expoentes, mas essa sinalização de virtude já se espalhou para a direita. Asad Haider, no seu livro “Mistaken Identity: Race and Class in the Age of Trump, comenta que a política identitária surgiu “em 1977 pelo Combahee River Collective, um grupo de feministas socialistas lésbicas negras que reconheceram a necessidade de ter suas próprias políticas autônomas ao enfrentarem o racismo no movimento de mulheres, o sexismo no movimento de libertação negra e o reducionismo de classe.” Elas não se entrincheiraram dentro de suas pautas, mas pelo contrário,“ defenderam a construção de coalizões em solidariedade com outros grupos progressistas, a fim de erradicar toda opressão, enquanto colocava a sua própria em primeiro plano.”[3] Mark Lilla, que tece críticas à política identitária por ela reforçar as diferenças ao invés de unir por aquilo que as pessoas têm em comum, acrescenta que a “política identitária da esquerda tratava inicialmente de grandes classes de pessoas — afro-americanos, mulheres — que buscavam corrigir os principais erros históricos por meio da mobilização e depois trabalhando por meio de nossas instituições políticas para garantir seus direitos.”[4] Inicialmente a política identitária foi constituída para que desse voz a grupos minoritários, motivados pelas marchas dos direitos civis nos anos 60. Eram “grupos dentro de grupos”, como no movimento feminista, negro ou indígenas que se dividiam em sub-grupos como de lésbicas e gays. Lilla argumenta que nos anos 80 uma mudança ocorreu, que “deu lugar a uma pseudopolítica de auto-estima e autodefinição cada vez mais estreita e excludente que agora é cultivada em nossas faculdades e universidades.”[4]

A mudança que ocorreu foi de um movimento coletivo, que buscava agregar pessoas de raças e gêneros diferentes para que pudessem lutar por suas pautas, para um movimento individualista, que está em busca de autoafirmação e de demonstração de virtudes pessoais. Haider chega a conclusão de que os movimentos sociais não tem “uma linguagem sobre lutas coletivas que abordem questões de racismo e possam incorporar movimentos inter-raciais.” Seria essa a razão “pela qual esse tipo individualista de política identitária surge tanto na esquerda entre ativistas que realmente querem construir movimentos que desafiem a estrutura social é porque perdemos aquela linguagem que veio com os movimentos de massa, que poderia nos permitir pensar em maneiras de construir essa solidariedade.” Haider conclui que a política identitária contemporânea é uma “neutralização dos movimentos contra a opressão racial” ao invés de uma progressão da luta popular contra o racismo.”[3]

UMA NOVA RELIGIÃO

Os novos movimentos identitários não conseguem engajar em sua luta por quererem muito mais que apoio ideológico, mas de certa maneira, querem uma conversão ao movimento. Lilla faz a comparação entre a retórica dos movimentos evangélicos avivalistas americanos com os identitários-revolucionários, ele diz que “a retórica que está sendo gerada soa mais evangélica do que política. Aquele que agora ouve a palavra “woke” em todos os lugares é uma indicação de que a conversão espiritual, e não um acordo político, é a demanda.”[4] O termo “woke”,quer dizer “desperto”, se refere a uma maior percepção às questões relativas à justiça social, dentre os quais, o ativismo por justiça racial e causas progressistas ou socialmente liberais, como anti-racismo, direitos LGBT, feminismo e ambientalismo.[5]. Esse novo movimento, que seria um tipo de evangelho progressista, que têm em suas doutrinas, como descreve Lilla: “ Vigilância implacável da fala, a proteção de orelhas virgens, o aumento de pecados veniais em mortais, a proibição de pregadores de ideias impuras”. Ele afirma que esses movimentos, tem suas origens nos evangélicos norteamericanos. “todas essas loucuras de identidade no campus têm seus precedentes na religião reavivalista americana.”. Ele continua, “o liberalismo identitário deixou de ser um projeto político e se transformou em um projeto evangélico. A diferença é esta: evangelismo é falar a verdade ao poder. A política trata de tomar o poder para defender a verdade.”[4]

Pelo modo de agir desses movimentos identitários, podemos traçar similaridades com o sistema ritualístico judaico, o próprio Lilla fala de pureza e impureza, do mesmo modo que os fiéis deveriam ser puros para adorarem a Deus, os adeptos devem ser puros de todo tipo de pré-conceito ou que participem de algum tipo de “auto-de-fé”, no qual confessam todos seus pecados pregressos em humilhação pública e assim podem participar dessa nova religião. Esses movimentos identitários, como posto por Lilla, devem sua origem aos movimentos avivalistas que levaram o evangelho a todo o país. Além do evangelho, eles trouxeram consigo valores como liberdade, direitos humanos e igualdade. Entretanto, os progressistas-identitários não conseguem notar, que de maneira nenhuma, esses valores são auto-evidentes ou universais, pelo contrário, eles são judaico-cristãos. Sem a crença de que todos são criados à imagem de Deus e a afirmação paulina de que “Não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem há homem e mulher”(Gl.3.28), não há base para acreditar que o racismo, a escravidão ou o sexismo são errados. Sem a revelação bíblica, uma luta pelo poder nietzschiana, no qual o mais forte subjuga o mais fraco, ou darwiniana, no qual os mais fortes e adaptáveis sobrevivem, faz muito mais sentido. Mesmo que mascarem seu movimento aplicando um tipo de evangelho social, sendo uma forma distorcida do Cristianismo. Suas demandas são totalmente dependentes do Cristianismo para sua existência.

Se esses movimentos não se auto-avaliarem e verem que não adianta buscar validação e manifestação de virtudes a todo tempo, nem promover uma cultura de cancelamento, não irão conseguir atrair pessoas fora da bolha progressista-identitária. Haider chega a conclusão que esses movimentos foram reduzidos “ a performances de identidade.”[3] que se preocupam mais em sinalizar suas virtudes do que, de fato, engajar em mudanças verdadeiras. “Como resultado, a política identitária paradoxalmente acaba reforçando as próprias normas que se propôs a criticar.”[3]. No final, se tornaram iguais aos fariseus dos tempos de Jesus e o conselho que foi válido para àqueles fariseus pode ser usados pelos novos. Que eles possam “tirar a trave dos seus olhos” antes de querer apontar os ciscos nos olhos do mundo inteiro.

BIBLIOGRAFIA:

[1] THIESSEN, Gerd; MERZ, Annete. O JESUS HISTÓRICO; UM MANUAL, 1996, p.162 e 252.

[2]https://www.britannica.com/topic/biblical-literature/The-Pharisees#ref598056

[3]KUMAR, Rashmee. HOW IDENTITY POLITICS HAS DIVIDED THE LEFT: AN INTERVIEW WITH ASAD HAIDER. In: https://theintercept.com/2018/05/27/identity-politics-book-asad-haider/?comments=1

[4]LILLA, Mark. THE ONCE AND FUTURE LIBERAL: AFTER IDENTITY POLITICS,2017 (edição eletrônica)

[5]https://en.wikipedia.org/wiki/Woke

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Thiago Holanda Dantas
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Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2