A normalidade da peste: Por que os sinos batem?

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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6 min readMar 5, 2021

Por que morrer mais um faz toda a diferença?

O poeta inglês e clérigo anglicano, John Donne (1572-1631), escreveu um dos mais belos poemas sobre o valor e importância de cada ser humano. Em um dos trechos de Meditações, que ficou famoso por Ernest Hemingway em“Por quem os sinos dobram”, diz assim:

…Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um amigo teu, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido;

Somos um único corpo, a humanidade é um continente, e por isso, quando qualquer um dos seus membros se vai, como um misero grão de areia, um pedaço da humanidade morre conosco. Não existem homens-ilhas, que vivem somente para si. Se existe esse tipo de homem ele já nasce morto. Somos o que nos antecedeu e o que recebemos de todos ao nosso redor. Mesmo um Robinson Crusoé ou Chuck Noland(Tom Hanks) de O Náufrago, que mesmo isolado do continente, leva o continente consigo para ilha e é capaz de enterrar um dos pilotos, que não era seu amigo, mas era um humano, e por isso tinha o dever de enterrá-lo. O amigo da bola “Wilson” continuou sendo humano, mesmo isolado e ausente da humanidade.

Antígona, a peça de Sófocles, o dramaturgo grego, relata as desventuras de Antígona, para enterrar seu irmão Polinices, morto em batalha, que foi proibido de ser enterrado com as devidas honras, por seu próprio tio, Creonte, o rei de Tebas. Creonte estava decretando a mais cruel pena a qualquer pessoa daquele período. Seu decreto atingia terra e céus, pois condenava Polinices à estar longe do Hades, o mundo dos mortos, e vagar pelo rio da morte por 100 anos sem poder atravessá-lo. Antígona resolve enfrentar o rei , a cidade e o decreto. Imbuída em sua missão de dar um enterro devido ao seu irmão.

“eu erguerei um túmulo para meu irmão muito amado”, enfatizando que “será um belo fim, se eu morrer, tendo cumprido esse dever. Querida, como sempre fui, por ele, com ele repousarei no túmulo… com alguém a quem amava; e meu crime será louvado (…)”.

Antígona é só uma peça, mas mostra como não ter o direito de enterrar seu irmão com as devidas honras era um ataque à cidade e aos seus cidadãos. E além, toda a humanidade estava sendo atacada. Isso não se tratava de Antígona ou Polinices, se tratava de de toda Tebas. Todos compartilhavam da mesma dor de Antígona e por isso, ficaram ao seu lado. Como relata, Hêmon, seu noivo e filho de Creonte:

“…a cidade inteira deplora o sacrifício dessa jovem; e como, na opinião de todas as mulheres, ela não merece a morte por ter praticado uma ação gloriosa… Seu irmão jazia insepulto; ela não quis que ele fosse espedaçado pelos cães famintos, ou pelas aves carniceiras. ‘Por acaso não merece ela uma coroa de louros?’, eis o que todos dizem, reservadamente”

Antígona consegue enterrar seu irmão e morre por isso. Seja na Grécia antiga, no cristianismo ou no judaísmo, o luto é algo sagrado e por isso é respeitado. O mandamento cristão convoca à solidariedade, Paulo diz que devemos “chorar com os que choram” e também “alegrar-nos com os que se alegram”(Rm.12:15). Paulo está demonstrando que na comunidade do Cristo ressurreto, dor e alegria são compartilhados, assim como disse Jesus, que o “Pão é nosso” o sofrimento e a felicidade também são nossos. “Tudo é vosso” proclama Paulo, “mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus” (1Cor 3,22–23). Somos comunidade que se re-une, através de Cristo, à todas as coisas e a todos aqueles unidos n’Ele. Essa nova comunidade é a recriação, através da obra do ressuscitado, de uma nova humanidade, onde não há distinção entre “…judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher;” e entre dor, alegria e luto, elas não são mais individuais. “Porque todos vós sois um em Cristo Jesus…(Gl.3.28)”. Diz o Talmud hebraico, “aquele que salva uma vida, salva um mundo inteiro”. Essa é a importância de uma única vida, o mundo todo!

Por isso, não há como defender que uma vida não vale nada, que devemos deixar de “frescura, de mimimi”. Ou “chorar até quando”? Não dá para viver a vida como se nada tivesse acontecido. O choro, o luto, é o que nos faz humanos. Poder chorar os nossos mortos é o que faz-nos participantes dessa humanidade. E quando paramos de nos importar? Quando uma morte se torna menos um corpo sobre à Terra e somente mais um à sete palmos? Deixamos de ser humanos?

Camus, mesmo que involuntariamente, revela essa resposta em seu livro, O estrangeiro. Ele conta a história de Meursault, um homem comum, que recebe um telegrama comunicando a morte de sua mãe, o livro começa com o impacto da mensagem em sua vida:

Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: “Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos.” Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

Essa é a tônica do livro, o relato de um protagonista que não sente dor e não revela nenhum sentimento pela perda da mãe e por qualquer outra coisa. Isso é a marca de estranheza sobre o protagonista, e sobre todos que convivem com ele. Sua apatia continua gerando estranheza, até que comete um assassinato contra um árabe.Tomado de tédio ou pelo calor do sol, mata um homem, que havia importunado Meursault e seu amigo, momentos antes.

Ele é preso e durante o julgamento, ninguém parece se importar com o árabe, mas sim, no fato de Meursault não chorar nem mostrar qualquer sentimento no funeral da sua mãe. O homicídio do árabe se tornara pequeno, frente à razão porque Meursault não sentia a dor pela perda ou arrependimento pelo assassinato. O procurador chega à afirmar que “acuso esse homem de ter assistido o enterro da mãe com um coração de criminoso.”

O tribunal entende que se Meursault não pode sentir remorsos, ou chorar ou sentir qualquer coisa, não deve ser digno de viver, logo, deve ser “afastado da sociedade dos homens” e morto em nome da França para que ninguém repita os seus crimes. O livro termina com Meursalt na cadeia aguardando seu apelo e pensando sobre a indiferença do universo. Camus, escreve no prefácio da edição do livro, de 1955:

“Eu resumi o Estrangeiro a muito tempo atrás, com uma observação, eu admito, altamente paradoxal: ‘Em nossa sociedade qualquer homem que não chorar no funeral de sua mãe, corre o risco de ser sentenciado à morte’. Eu só quis dizer que o herói de meu livro é condenado porque ele não jogou o jogo.”

Não Camus, (apesar dele achar que Meursault foi sincero e não mentiu sobre seus sentimentos, pouco me importa!!!) ele não morreu por não jogar o jogo, ele morreu por ser estrangeiro. Ele é um estranho, sem lar e sem chão. Sua mãe não lhe importava, muito menos o árabe, nada era-lhe importante. Meursault estava flutuando como uma ilha abandonada, por isso, foi condenado à morte. Um homem que não chora por sua mãe, sua terra; não precisa morrer ele já morreu. Foi assim, que o juiz e o júri entenderam, assim nós entendemos.

…por isso, nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

Devemos, assim como John Donne, não perguntar por que os sinos dobram, pois é por você e por mim que os sinos do luto alheio batem. Você morre quando o outro morre. Não há como separar isso. A pergunta do fariseu a Jesus e de Caim para Javé , ecoam cada vez mais em nossos ouvidos a cada morte que acontece no Brasil e no mundo: Quem é meu próximo? Que tenho eu com meu irmão?

A resposta de Javé, “o sangue dele clama da terra”, revela a nossa culpabilidade, Caim morreu quando Abel morreu. Eu morro, quando meu irmão morre. Por isso, que se ainda somos humanos (humus, terra), devemos com todo esforço que ainda nos resta como humanidade, não deixar que meu irmão morra sem que eu não me importe e que possa ter a oportunidade de derrubar o muro de separação entre eu e o outro e poder chamá-lo de próximo.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2