A síndrome de Emaús — Quando a ideologia cega

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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6 min readSep 25, 2020
A ceia em Emaús (Caravaggio) — 1601

Naquele mesmo dia, dois dos discípulos de Jesus iam a caminho da aldeia de Emaús que ficava a uns 11 quilómetros de distância de Jerusalém. E comentavam entre si tudo o que acontecera. De repente Jesus apareceu e juntou-se a eles, caminhando ao seu lado.Mas os seus olhos estavam impossibilitados de o reconhecer…(Lc.24.13–16)

Aqueles dois discípulos (só nos é revelado o nome de um, Cleopas) estavam voltando de Jerusalem após a morte de Jesus. Eles estavam abatidos conversando sobre todos os planos, os sonhos e as esperanças que morreram junto com seu mestre. Enquanto conversavam um homem surge e os discípulos não o reconhecem, mas era o próprio Jesus entre eles.

Aqueles discípulos tinham como maior expectativa Israel ser libertada da subjugação romana(Lc.23.21) Esse anseio guiava-os e muitos outros que olhavam Jesus como o grande libertador político. Essa era a ideologia que os movia.

Ideologia, entende o marxismo, como um grupo de ideias formado pela classe dominante para fingir que a ordem de coisas atual é natural e demonstra o interesse de todos. No final, a ideologia torna-se um dos instrumentos da reprodução do status quo e da própria sociedade. Marx diz que “A classe que tem os meios de produção material à sua disposição tem controle ao mesmo tempo sobre os meios de produção mental”[1]. A ideologia nesse caso, seria algo de cima para baixo, algo construido por aqueles que estão no poder. Não acho que isso mostra o que, de fato, a ideologia é, há algo que escapa. Já o filosofo político Martin Seliger define ideologia como “conjuntos de idéias pelas quais os homens [sic] postulam, explicam e justificam os fins e os meios da ação social organizada, e especialmente da ação política, qualquer que seja o objetivo dessa ação, se preservar, corrigir, extirpar ou reconstruir uma certa ordem social”[2]. Seliger se aproxima, pois coloca as ideas como justificativas para uma certa ordem social, nesse caso, os discipulos enxergam em Jesus o seu libertador e constroem sua ideologia ao redor dele. Há uma junção entre fé e política, onde o humano com suas contradições no centro, une esperanças políticas aos seus compromissos de fé, ou seja, o político carrega a fé e a fé está posta na esfera políca. Eu prefiro entender ideologia como os compromissos de coração. Pois, é lá, que moram nossas paixões mais profundas, assim diz o sábio de Provérbios: “acima de tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida.” (Pv. 4.23), É no coração que estão as criações ideologicas humanas, é de lá que as fontes brotam e são construidas as visões de mundo, Jesus acrescenta que do coração, também surgem os maus pensamentos e intenções:“Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias”. (Mt. 15.19). É dentro dessa caixa-preta desconhecida, onde a mais profunda visão de mundo está encrustrada e de que nem mesmo o próprio portador conhece seus mistérios. Por isso, o profeta pergunta incrédulo: Quem pode entender o coração humano?(Jr.17.9). E qual seria essa paixão que consumia e comprometia a visão desses discipulos?

Eles tinham a cegueira de ver o Império romano derrubado, e era isso que importava. A sua principal esperança era de que Jesus se tornasse o novo rei, que derrubaria Roma e começaria um novo reino davidico. Sua expectativa era limitada à mudança da situação política, somente àquilo que era condição histórico-material importava. Apesar de Jesus dizer inúmeras vezes que ele morreria quando fosse para Jerusalém(Mt. 20.17–19;Mc. 10.32–34; Lc.18.31–34), eles não compreendiam, Lucas chega a afirmar que “eles nada dessas coisas entendiam, e esta palavra lhes era encoberta; e não entendiam o que se lhes dizia”. Uma nuvem negra pairava entre os sinais e ensinamentos de Jesus que se confrontavam com a ideia de morte. Não era possivel que Jesus, “homem profeta, poderoso em obras e palavras”(Lc.24.19) pudesse morrer. No pensamento judaico, um messias morto estava totalmente fora de cogitação, e é por isso, que quando Jesus fala que será crucificado e morreria, eles não compreendem e quando ele morre, obviamente, Ele não era o messias[3].

Entretanto, para que suas expectativas políticas tivessem lugar, eles tiveram que construir um falso Jesus, que fosse adequado à ideologia. Um Jesus revolucionário, como Barrabás, era o que eles precisavam para validar as suas esperanças messiânicas, e assim foi criado. A ideologia cega, mata e faz enxergar cristos imaginários, muito longe do que é real. Da mesma forma, hoje em dia, Jesus é de direita, de esquerda, conservador, revolucionário, gay, tudo o que as ideias façam brotar e as ideologias tentam encaixar nas cabeças e corações tardios para entender quem é Jesus. Para que os discipulos abandonassem suas ideologias falsas, Jesus faz com que lembrem das escrituras. Esse é o primeiro passo para que os discipulos recobrassem a visão:

E ele lhes disse: Ó néscios, e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!
Porventura não convinha que o Cristo padecesse estas coisas e entrasse na sua glória?
E, começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras.Lucas 24:25–27

Jesus estava a todo momento na frente deles e eles não conseguiam enxergar. Obviamente o Cristo ressurreto tinha algo de diferente que não sabemos o que era. Marcos diz que Jesus “manifestou-se de outra forma(μορφή)”(Mc.16.12). Ou seja, uma aparência distinta daquela que os discipulos conheciam. Caravaggio, (na pintura do início) recria Jesus sem barba e com aspecto jovial, que tentava mostrar essa forma “renovada” de Jesus. Por outro lado, podemos entender que aquele Jesus diante dos olhos dos discípulos, era o Jesus real, longe das ilusões ideológicas, e não o que os discípulos haviam criado. O Jesus construido pelos dois havia morrido na cruz. Aquele projetado por sua visão turva e pequena era um revolucionário que tomaria o poder de Roma, esse Jesus, de fato, morreu na sexta-feira.

O que eles não enxergavam ou não eram capazes de compreender, era que Jesus estava começando a restaurar todas as coisas. Ele era o primeiro da nova criação(Col.1.15), inaugurando um Reino muito maior do que Roma ou qualquer outro imperio que já existiu. Um reino sem fim, não amarrado aos ditames dos corações cegos e tardios para compreender, não compremetido com o jogo do poder, um reino que tinha um rei Eterno que com o poder da ressurreição e de sua palavra faria tudo novo.

Jesus, após guiá-los pela palavra, resolve cear com os dois, e é nesse momento, do partir do pão que seus olhos são abertos. Foi na comunhão que Jesus mostrou quem era. Foi no momento em que os dois, solitários em sua visão equivocada, tornam-se três (Mt.18.20). O Jesus real era o que faltava-lhes. Nesse momento, Jesus uniu as pontas soltas de sua ideologia fracassada pela crucificação, enterra de vez a sexta-feira e faz brotar o domingo no coração dos discípulos. Jesus havia ressucitado nos corações de Cleopas e do outro, que pode muito bem ser eu ou você, com nossas expectativas fadadas à frustração. Agora eles veem!

Os dois têm seus corações aquecidos pela palavra e pela comunhão com o Senhor, Lucas parece nos apontar que a partir da ressurreição, Jesus só poderia ser visto atráves da sua palavra e da comunhão. NT Wright acrescenta, “Somente com ele ao nosso lado nossos corações arderão dentro de nós (versículo 32),e nos leva ao ponto em que o vemos face a face.”[4] Desse momento em diante, estão prontos para voltar à Jerusalem e se unir à igreja que estava sendo construida, que nascia do domingo da ressurreição.

Essa história mostra como as ideologias são como cobertores curtos que cobrem os pés, mas descobrem a cabeça. Elas não são capazem de dar a segurança que buscamos. Jesus fala que o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça (Mt.8.20), se Ele não têm onde pousar sua cebeça enquanto esteve na terra, nós muito menos. Nossa mente não possui descanso terreno, entretanto, ela está em busca de lugar de repouso, mas isso não existe. O descanso que uma ideologia oferece, o senso de sentido e completude é falso, uma ilusão que preenche a carência de valores firmes e concretos em um mundo em transição contínua, em suma, é um cobertor curto que esfria os pés ou deixa a cabeça descoberta. Somente jesus é a rocha, a âncora, o sólido para a busca do homem liquido, que está perdido em suas falsas ideologias.

[1] MARX, Karl. The German Ideology, 1968 in:https://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/german-ideology/ch01b.htm

[2] EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma introdução. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo,1997.p.20

[3] WRIGHT. N.T. Surpreendido pela esperança. Viçosa: Ultimato, 2009. p58

[4] WRIGHT. N.T. Luke for everyone.London:Westminster John Knox Press, 2004 p.295

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2