Anestesia à dor: a expulsão do outro como cura do sofrimento

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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6 min readMay 23, 2022
Jó e seu amigos

Um avô perdeu seu neto. Pode ser algo comum, mas a diferença é que esse avô provocou a morte. Não foi um assassinato, ocorreu como produto da imprudência do rapaz que corria em alta velocidade e bateu de frente com o avô que acabara de sair de casa, com sua moto, vagarosamente. A tragédia aconteceu em uma pequena cidade do interior da Paraíba. Mas o que me chamou a atenção, além da morte abrupta de um jovem de apenas 16 anos e a dor de um avó, culpado pela morte de seu neto, foi a maneira como a dor foi expressada, muito diferente do que aconteceria em uma cidade grande.

O avô, após voltar do hospital, com a perna quebrada, foi para a entrada de casa e cercado por seus parentes, gritava e chorava pela morte do neto. Ali em meio a dor, cada morador que passava pela rua, ao ver o homem naquele estado, foi prestar suas condolências. Um a um, todos iam dizer algumas palavras de conforto. O homem, como um Jó contemporâneo, pode sofrer o luto de perder seu neto e expressar sua dor publicamente, sem qualquer ressalva ou reprimenda. A dor não foi calada e dentro e pouco, ele conseguiu voltar para uma vida, quase, normal.

Essa cena, inimaginável em uma grande metrópole, mostra que a dor é coletiva, não pode ser vivida isoladamente. Tem que ser compartilhada para ser absorvida pelo todo e, não somente, pelo indivíduo que está sofrendo.

Byung-Chul Han, acerca da dor, fala da incapacidade contemporânea de sentí-la, do quase pânico ao menor sinal de que esteja passando por algo parecido ao sofrimento. “Hoje impera por todo lugar uma algofobia, uma angústia generalizada diante da dor. Também a tolerância à dor diminui rapidamente. A algofobia tem por consequência uma anestesia permanente. Toda condição dolorosa é evitada”. Um dos efeitos, segundo Han, do medo da dor, é a anestesia. Ao tentar parar de sentir dor, acaba-se por não sentir mais nada. Não é possível retirar a dor da experiência humana. Ao fazê-lo, retira-se o que faz do humano, humano — sua capacidade de sentir dor e experimentar a dor sentida pelo outro. Dessa capacidade, aprende-se a ter empatia, e assim, pode sair da prisão do eu e embarcar no complexo-outro, o emaranhado de relações para além de mim mesmo. O outro dói, pois não é o mesmo, não está preso aos ditames do eu. O outro extrapola o que eu acho, penso, sinto; ele está para além.

Deus, para Karl Barth, seria o totalmente Outro, pois Ele, somente Ele, está fora de toda afetação humana. Deus não pode ser mudado nem influenciado, Ele está nos céus e faz o que quer (Sl.115). Por isso Ele é o “Outro outro”, o verdadeiro Outro que está longe da mera experiência humana. Todos os outros “outros”, estão dentro da vivência humana. Nosso desafio é transformá-los de outros em próximos.

Han diz que vivemos em uma sociedade paliativa, que deseja estar livre da dor. Nesse caso,

“a sociedade paliativa é, ademais, uma sociedade do curtir. Ela degenera em uma mania de curtição. Tudo é alisado até que provoque bem-estar. O like é o signo, sim, o analgésico do presente. Ele domina não apenas as mídias sociais, mas todas as esferas da cultura. Nada deve provocar dor”.

A provocação, feita por Han, nos faz perguntar como é possível conviver com a dor e o sofrimento, se todo o meio está encharcado de positividade por todos os lados. O espaço da tristeza e do sofrimento dá lugar ao like analgético. Se pudéssemos viajar ao futuro, veríamos que os médicos receitariam, ao invés de remédios, tratamentos para receber quantos likes forem necessários para anestesiar o ego. Medicamentos teriam um medidor de likes para potencializar seus efeitos. “O like dominará a medicina e expulsará a dor para sempre”. Esse sonho, que parece distópico, é o presente exagerado, de uma sociedade que vive a “vida […] instagramável, ou seja, livre de ângulos e cantos, de conflitos e contradições que poderiam provocar dor”. Han diz, em outra parte, que “Analgésicos, prescritos em massa, ocultam relações sociais que levam à dor. A medicalização e a farmacologização exclusiva da dor impedem que ela se torne fala[…]. Elas tiram da dor o caráter objetivo, o caráter social”. Se o avô, do inicio do texto, fosse altamente medicalizado, será que poderia viver a catarse trazida pela dor? Será que poderia algum dia superá-la, se vivesse submerso por pílulas e analgésicos? O avô pode diminuir sua dor ao compartilhar com toda a comunidade e toda a comunidade pode absorver essa dor. Sem a esfera social da dor, não é possível superá-la e aprender com ela. Assim, continuamos presos à dor, enterrados em nós mesmos e não sendo capaz de enxergar o sofrimento do outro.

O outro e seu olhar, é o que Han escreve em seu “Expulsão do outro”, são postos como a salvação para o indivíduo que sofre. Ele dá o exemplo do filme “Melancholia”, de Lars von Trier. No filme, “Justine é curada de sua depressão no momento em que desperta nela um desejo pelo Outro. […] O olhar do Outro a liberta da depressão e a transforma em amante”. Portanto, foi o olhar, não o mero espreitar ou a curiosidade do seguidor, que está hoje nas redes sociais, que pode tirar Justine de seu estado. O outro, com seu olhar, foi capaz de transformar o sofrimento em amor (eros). Não é possível, diante dos olhares descompromissados daqueles que observam por entre telas, retirar alguém de seu sofrimento. É o olhar que, pacientemente se demora no outro, poderá retirar o eu de sua prisão.

“Através do olhar”, diz Jeremy Weissmann, “cada vez maior de uma audiência on-line, podemos nos tornar excessivamente pressionados, até mesmo coagidos em relação à opinião coletiva, à medida que o mecanismo de curtidas, não curtidas, amigos e seguidores da mídia social constantemente nos submete ao julgamento da multidão juntamente com aquele olhar”. Portanto, não é qualquer olhar que tem o poder de nos retirar de nós mesmos e de nossa dor e ir em direção ao outro. O olhar deve ser de alguém que se fez próximo. E quem poderia ter o olhar curativo que pacientemente pode nos observar a todo instante e retirar-nos da prisão do eu? Somente Um. O totalmente outro, aquele que a todos observa e se tornou humano para ser o mais próximo possível. Como o mesmo Barth, que colocou Deus como totalmente Outro, parecendo longe dos humanos, retrata-se mais à frente, como nos informa Fulvio Ferrario, ressignificando sua frase: “Deus é tão outro, tão diferente de nós, que pode ele ser, em Cristo, humano”. Deus, que se fez homem e conhece sua natureza(Jo.2.25), faz o uso de um megafone poderoso para quebrar a egolatria, como afirma Lewis:

“Deus sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas brada em nosso sofrimento: o sofrimento é o megafone de Deus para despertar um mundo surdo.“

Lewis está dizendo, em outras palavras, que o sofrimento é a única forma eficaz de irromper a surdez humana. Diante do sofrimento tudo se cala, as palavras faltam, nesse momento podemos olhar para Deus. A ilusão da existência, com suas riquezas, sonhos e planos, se esvai quando o poderoso megafone é usado. “[O homem mal] uma vez despertado pelo sofrimento, ele sabe que, de uma forma ou de outra está ‘face a face’ com o Universo real”. Lewis aplica isso ao homem mal (mas quem é bom?), portanto, isso pode ser aplicado a qualquer um imerso em sua dor e em si mesmo.

Entretanto, mesmo com essa poderosa ferramenta divina, se continuarmos a sermos observados pelos expectadores virtuais, que não desejam ajudar, mas somente nos usar para continuar o espetáculo macabro de sofrimento, recompensando-nos com likes e comentários, podemos nos manter, confortavelmente, dentro da prisão do eu, imerso no inferno do igual. Longe de qualquer cura e aprendizado trazidos pela dor.

WEISSMANN, Jeremy. The Crowdsourced Panopticon : Conformity and Control on Social Media, 2020.

HAN, Byung-Chul. The expulsion of the other: society, perception and communication today, 2018.

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa, 2022.

LEWIS, C.S.. O problema do sofrimento, 2009.

https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/585274-barth-e-o-totalmente-outro

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2