As coisas flutuam pelo ar: Um ensaio sobre a leveza moderna

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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5 min readOct 26, 2021

“Os sólidos desmancham no ar”. Marx declarou no século 19, que as coisas começaram a perder seu peso. Nesse novo tempo, Marx viu que a modernidade, envolta no capitalismo, tinha a capacidade de “desmanchar sólidos no ar”. As coisas estavam, cada vez mais, se esvaindo, desaparecendo e perdendo seu peso e valor. As coisas, anteriores ao capitalismo atual, deveriam ter peso para que percebamos o seu valor, “você vale o que você pesa” não era um ditado à toa.

O projeto moderno é um ataque ao peso e ao corpo. Isso fica mais evidente quando Descartes declara: “Penso, logo, existo”. Para Descartes, só existia existência real numa coisa pensante. Diz Nancy Pearcey que, com Descartes, ”o corpo [se torna]um mecanismo que atende às necessidades e desejos da mente, como o piloto de um navio ou o motorista de um carro. O filósofo Daniel Dennett explica: ‘Desde Descartes, no século XVII, temos uma visão do eu como uma espécie de fantasma imaterial que possui e controla um corpo da maneira como você possui e controla seu carro.’”(2018, p.50). O corpo é deixado de lado, sendo apenas uma máquina sujeitada a mente e não possui valor. Na modernidade, a existência passa a ser válida, não pelo volume e peso que um corpo ocupa, mas pela leveza do ser que pensa .

Anteriormente, as coisas tinham valor pelo peso que possuíam. Pense num móvel, talvez uma mesa, que era avaliada pela qualidade da sua madeira, seu peso revelava qualidade e durabilidade. Assim, quanto mais pesada, mais durável e confiável era o produto. Ser leve era uma clara demonstração de algo sem valor, que poderia quebrar a qualquer instante. Essa mesma analogia pode ser transportada para as relações humanas. Elas deveriam ser sólidas, permanentes, sua data de expiração era somente diante da morte, nada além disso poderia abalar as relações.

Entretanto, quando o projeto moderno, de negação do corpo e da matéria, se encontra como uma nova era guiada pelo capitalismo, o objeto mais leve, portátil e descartável, tem mais valor que o pesado, imóvel e durável. Agora, é a deterioração, substituição e reciclagem das coisas que determinam seu valor, diz Bauman que, “é a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da substituição que traz lucro hoje — não a durabilidade e confiabilidade do produto”(2001, p.21), ou seja, todas as habilidades antes descartadas, agora, são aquelas que devem ser perseguidas, pois a habilidade de ser leve que é mais levado em conta.

Essa nova forma de vida, sem contato com o real, apenas uma liquidez, como diria Bauman, no qual a vida se esvai, retirou a importância do mundo, nada mais possui valor, somente aquilo que pode ser convertido em informações e dados. “Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado”(BAUMAN, 2001, p.22). Amigos, objetos, momentos, comunidade e todas as relações humanas são datificadas, diminuídas para se tornarem apenas dados, sem corpo ou forma, achatados por uma tela.

O que Marx via somente como lampejos dos objetos que “flutuavam pelo ar”, hoje, no capitalismo recente, depois das revoluções digitais, diz Byung-Chul Han que “a ordem digital desobjetifica o mundo, tornando-o em informações”. Os objetos deixam de ter relevância e agora, “[n]ão são objetos, mas informações que governam o mundo. Não habitamos mais o céu e a terra, mas a nuvem e o Google Earth. O mundo está se tornando progressivamente intocável, nebuloso e fantasmagórico”(BORCHERDT,2021).

O sonho de tornar-se leve como o ar se tornou uma realidade no mundo digital, entre dados e informações, o mundo perdeu o sua gravidade e nos tornamos seres desarraigados, vagando por entre informações, sem peso algum, que não agregam em conhecimento, continua Han, “Tomamos nota de tudo, sem obter discernimento. Comunicamos constantemente, sem participar de uma comunidade. Guardamos uma grande quantidade de dados, sem rastrear as memórias. Acumulamos amigos e seguidores, sem encontrar outros. É assim que a informação desenvolve uma forma de vida: inexistente e impermanente” (BORCHERDT,2021).

Com a alta velocidade das informações, os humanos que habitam em um presente extremo, sejam bombardeados de novas informações, fazendo com que não seja possível absorver todas essa enxurrada de dados, assim:

No espaço de apenas 20 anos, a internet nos transformou completamente. Foi alterado não apenas a estrutura do nosso cérebro, mas a estrutura do planeta. Nossos momentos de atenção encurtaram para o comprimento de uma canção dos Beatles. Nossas vidas eram reconhecidas como histórias; agora elas desmoronaram para um fluxo perpétuo de atualizações de tweets e posts. Nós terceirizamos nossa memória para a ‘nuvem’, para lembrar nada que não precise. Tudo o que existe é imediatamente no agora. A internet, como todas as tecnologias, não está se moldando para se parecer com seres humanos. Os seres humanos estão sendo moldadas para se parecer com a internet. Bem-vindo à era do Presente Extremo.(BASAR;COUPLAND;OBRIS, s/d)

A tecnologia se infiltrou e foi amalgamada à natureza psíquica humana de tal forma que se quer pensar e agir como uma máquina, fazendo sentimentos e emoções tornarem-se descartados e descartáveis, pois o homem tecnológico moderno, não pode ser subjugado por sentidos tão primatas e arcaicos. Deste modo, o corpo e o outro, se torna algo passageiro e desnecessário.

Mas, pelo contrário, precisamos do corpo, do outro e do peso de objetos e das relações. Han fala dos objetos que devem ter peso, para que possamos saber que eles existem de fato. Entretanto, não somente os objetos, mas nós precisamos do peso das coisas, para saber que continuamos à existir. São esses objetos e as pessoas com o qual nos relacionamos, que fazem com que nossas vidas possuam um peso especial, que ocupe seu espaço no mundo e que tenha sentido. Giramos ao redor dessas pessoas e objetos, elas nos emprestam sua “gravidade” para que tenhamos um eixo e possamos viver em um mundo cada vez mais fora de órbita. Se perdermos as pessoas próximas a nós e objetos que nos remetem a momentos inesquecíveis, perderemos quem nós somos e seremos como meras folhas ao vento, sem rumo ou local para repousar. Por isso, é necessário deixar esse projeto de descorporificação do mundo, porque a leveza não nos tornará mais humanos, pelo contrários, seremos fantasmas habitando em um mundo etéreo, sem a presença de outros humanos, fadados a navegar por entre “experiências breves e desencarnadas” (BORCHERDT,2021).

BIBLIOGRAFIA:

BAUMAN, Zygmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001

BORCHERDT, Gesine. Byung-Chul Han: How Objects Lost their Magic. In: https://artreview.com/byung-chul-han-how-objects-lost-their-magic/

PEARCEY, Nancy. Love Thy Body: Answering Hard Questions about Life and Sexuality,2018

BASAR,Shumon; COUPLAND,Douglas; OBRIS,Hans Ulrich.the extreme present: an evening of self-help for planet earth.Disponivel em:<http://www.intelligencesquared.com/events/the-extreme-present-an-evening-of-self-help-for-planet-earth/>Acesso em: 17 de Set.2015

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2