Ateu? Nunca conheci um… Um convite ao Diálogo sobre fé em uma Cosmovisão Secular.

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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8 min readFeb 6, 2024

Ateísmo é um conceito relativamente recente. Está distante da compreensão que frequentemente atribuímos atualmente. Surgiu na Grécia antiga utilizado inicialmente, não para expressar a ausência de crença em Deus ou deuses em geral, mas para denotar a descrença específica nos deuses gregos. Sócrates, por exemplo, enfrentou acusações de “ateísmo” em sua época, não por negar a existência de divindades, no sentido contemporâneo, mas por questionar as crenças nos deuses de Atenas e propor a existência de outros. Vale ressaltar que essas acusações não foram sustentadas, conforme escrito na “Apologia de Sócrates”.

Um mundo sem deuses era totalmente inimaginável, pois, como observado por Taylor (2010), não havia imaginário social na Grécia antiga para conceber uma realidade desprovida de deuses ou outros seres transcendentais. Esse contexto muda somente no século 19, após a revolução industrial e o poderio econômico europeu, quando a humanidade sentiu-se livre para conceber um mundo sem um deus. Dessa forma, o ateísmo, como entendemos hoje, é uma invenção europeia impulsionada pelas mudanças econômicas desse período.

É intrigante notar que a liberdade para contemplar a ausência divina parece estar intrinsecamente ligada a um certo desenvolvimento econômico. Sem a ilusão econômica, a ideia de um mundo sem a presença de Deus se torna praticamente inimaginável. O projeto moderno, como descrito por Sloterdijk (2020), revela uma recusa na conversão que o cristianismo, juntamente com a metafísica clássica, queriam realizar no mundo. Essa recusa excluiu o Deus onisciente e controlador de todas as coisas.

Ainda utilizando o insight de Sloterdijk, o enfraquecimento divino foi devido à ofuscação da luz que Ele produzia por uma “luz artificial” que era produzida pela sociedade moderna. Isso fez com que “a luz de Deus parecesse fraca em comparação”. A luz divina, agora, só tem espaço para ser acesa em lugares e momentos específicos, “aos domingos e feriados desligando as máquinas de luz artificial” (SLOTERDIJK, 2020, p.10). É evidente que a luz artificial, descrita por Sloterdijk, só pode ser acesa quando dinheiro suficiente foi investido nessa empreitada para tentar apagar a luz divina. Entretanto, Deus não morre, pode ser ofuscado, mas “pode se recuperar da palidez quando os tempos são favoráveis, mesmo que a cor que ele recupera seja em grande parte questionável”. Essa constatação de Sloterdijk e de outros pode estar correta para falar dos deuses antigos e sobre o contexto europeu; entretanto, ela está equivocada para falar do resto do mundo, pois Deus sempre se recupera, está vivo e brilha mais do que nunca. Mesmo com a tentativa de alguns, como Nietzsche, que tentou realizar a tarefa de derrubar deuses. “Derrubar ídolos (a minha palavra para ‘ideais’) — eis o que já constitui o meu ofício” (NIETZSCHE, 2008, p.7,8). Ele não conseguiu; ficou louco no processo, mesmo usando seu martelo.

O alerta contra a ascensão econômica e o abandono de Deus já está nos antigos Hebreus quando vão entrar na terra de Canaã (Dt.6). Entretanto, a advertência de Jesus sobre “Mamon” (Mt.6:24), o deus-dinheiro, adquire uma relevância peculiar. A sugestão de que Mamon é o único deus que pode ser equiparado em termos de influência destaca a complexa relação entre pensamento econômico e a crença. O que Jesus demonstra é que o dinheiro pode se tornar uma divindade poderosa, revelando os perigos de colocar o poder econômico num pedestal semelhante ao divino. Mamon surge, assim, como o único deus que pode ser colocado em pé de igualdade, e por isso o alerta de Jesus é fundamental.

Deste modo, o ateísmo é contrário à própria natureza humana que, além de crer nos deuses, cria os seus próprios. “Há mais ídolos do que realidades no mundo” (NIETZSCHE, 2010, p.7). Nietzsche consta que é inútil rejeitar essa realidade. Contudo, esses ídolos estão escondidos, e nosso papel é descobrir quem são os deuses desconhecidos deles, o que se torna uma tarefa crucial. Em suma, somos seres de crenças e não apenas razão; cada um de nós, movidos por essas crenças, age e é influenciado, assim, elas devem ser vasculhadas e, muitas vezes, estão ocultas do próprio possuidor delas.

Paulo, apóstolo, ao chegar no centro do pensamento ateniense, no Areópago, realizou uma tarefa semelhante de trazer à luz um ídolo desconhecido. Naquele local, percebeu que aquelas pessoas eram religiosas, tão religiosas que adoravam um Deus que desconheciam. Diante desse cenário, seu papel era descortinar aquele deus para que eles pudessem reconhecê-lo como o Deus verdadeiro. Paulo fez o papel de desvelador da cosmovisão daquele povo. Para isso, ele seguiu alguns passos que podemos copiar:

  1. Conhecia o suficiente daquela cultura: cerca de seiscentos anos antes, uma terrível praga assolou a cidade, e um homem chamado Epimênides teve uma ideia. Ele soltou um rebanho de ovelhas pela cidade e, onde quer que se deitassem, sacrificavam essas ovelhas ao deus que tinha o santuário ou templo mais próximo. Se uma ovelha não se deitasse perto de nenhum santuário ou templo, eles sacrificavam a ovelha AO DEUS DESCONHECIDO (Agnostos Theos).
  2. Conhecia seu público-alvo: ali estavam epicuristas que buscavam o prazer como o propósito principal da vida e valorizavam acima de tudo o prazer de uma vida pacífica, livre de dor, paixões perturbadoras e medos supersticiosos (incluindo o medo da morte); e estóicos que eram panteístas que colocavam grande ênfase na sinceridade moral e em um elevado senso de dever. Cultivavam um espírito de dignidade orgulhosa e acreditavam que o suicídio era melhor do que uma vida vivida com menos dignidade.
  3. Sabia da curiosidade dos atenienses: eles eram ávidos por novos pensamentos, e foi essa avidez por novidade que fez com que ele pudesse falar naquele local. Assim, Paulo foi, ao mesmo tempo, curioso e soube atiçar a curiosidade dos ouvintes, sem ser desrespeitoso, coisa que infelizmente falhamos bastante.

Somente após esse desvelar da cosmovisão alheia é que ele pode revelar a sua. O resultado parece que não foi bem aceito, pois a tal da ressurreição (Anástasis) parecia uma nova divindade e foi mal compreendida, e não soubemos de nenhuma igreja fundada em Atenas. Pelo menos, dois convertidos são mencionados. Entretanto, a lição e a aproximação cultural do apóstolo podem ser copiadas por nós, vivendo em um Areópago globalizado.

Aquilo que Paulo fez, e que nós devemos fazer, é, se pegarmos um jogo de cartas como analogia, revelar quais as cartas que eles estão jogando. Pois, eles agiam como jogadores de cartas escondendo suas mãos. Enquanto nós, como cristãos, revelamos nossas cartas, isto é, nossas crenças, valores, cosmovisão, e etc.; eles acreditam que jogam de maneira igual, mesmo sem revelar quais cartas estão em jogo ou quais suas crenças e valores que estão defendendo.

Assim, poderemos jogar o mesmo jogo de significado ( WITTGENSTEIN, 1999), ou seja, aplicar as mesmas regras a um jogo que era jogado de forma distinta. Quando estivermos em pé de igualdade de crenças, poderemos começar a ser compreendidos. Portanto, a abordagem necessária é desvendar as cartas que estão escondidas, revelando a cosmovisão que os guia e as divindades que adoram inconscientemente.

As perguntas elaboradas por David Naugle sobre cosmovisão em Cosmovisão: A história de um conceito, podem nos ajudar: “O que é real?” “Quem sou eu?” “De onde vim?” “Por que estou aqui?” “Qual é a base dos meus valores?” e “O que o futuro reserva?”. As respostas à essas perguntas são a maneira de “revelar a mão” do interlocutor para ele/ela deixar de achar que está numa espécie de neutralidade de crenças.

Como disse G. K. Chesterton, “Quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em qualquer coisa”, essa é mais pura verdade. Quando se deixa de acreditar em Deus, qualquer outra coisa muito menor toma o lugar. Luiz Felipe Pondé, ateu, em entrevista à revista Veja de 13/7/11, comenta que, “não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou em si mesmo, que é a coisa mais brega de todas. Só alguém muito alienado pode acreditar em si mesmo”. Se um ateu como Pondé compreende a dinâmica falha do ateísmo, que acredita estar dentro de um vácuo religioso, o que, de fato, não existe. Mesmo sem querer, o resultado de não adorar a Deus é terminar de joelhos por qualquer outra coisa. O desafio é descobrir qual é essa outra coisa que está escondida, ou seja, o deus escondido que adoram sem saber.

Além das perguntas sobre cosmovisão, uma outra maneira de descobrir os deuses ocultos reside naquilo que move o interlocutor, especialmente nos amores que permanecem velados, ou seja, buscar a ordo amoris, a ordem do amor, que fundamenta suas ações torna-se, portanto, essencial. Scheler empreende uma busca pelo que verdadeiramente impulsiona o ser humano, na sua ordo amoris, afirmando que:

como tudo o que num homem ou num grupo podemos conhecer de moralmente relevante se deve reduzir — sempre mediatamente — a uma forma particular de organização dos seus atos de amor e de ódio, das suas capacidades de amar e de odiar: ao ordo amoris que os domina, que se expressa em todos os seus movimentos.(SCHELER,2012, p.2)

Para Scheler, a essência do ser humano está intrinsecamente ligada ao seu ordo amoris, e, como destaca, “Quem possui o ordo amoris de um homem possui o homem” (SCHELER, 2012, p.3). Em outras palavras, o ser humano é o desdobramento desses amores, muitas vezes desordenados, que o conduzem a se aproximar ou a desprezar algo. Assim, ao analisar os amores ou paixões humanas, permite que olhemos para além do discurso superficial.

A conhecida afirmação de Pascal, “O coração tem razões que a própria razão desconhece”, transcende o romantismo barato, revelando a verdadeira motivação que está guardada no mais profundo do ser humano: seu coração. Como o profeta Jeremias questiona, “quem pode conhecê-lo?”. Embora oculto para o próprio portador, o coração pode ser desvelado ao observarmos suas paixões e amores. Essas paixões, muitas vezes irrefletidas, são as forças motrizes que influenciam as ações e escolhas mais íntimas do indivíduo, proporcionando uma perspectiva única sobre a sua cosmovisão e as divindades que sem saber, adora.

Ao analisar as respostas provenientes da cosmovisão e dos amores ocultos, a ordo amoris, de cada indivíduo com o qual iniciamos um diálogo, conseguimos compreender melhor a cosmovisão que molda suas crenças e práticas. Ao nos envolvermos no mesmo jogo de significados, temos a capacidade de incentivá-los a refletir sobre suas convicções mais profundas, fomentando um diálogo respeitoso que considera as crenças e valores da pessoa envolvida. Ambos os interlocutores saem enriquecidos, permitindo um compartilhamento mais honesto de suas crenças.

FONTES:

NAUGLE, D. Cosmovisão: A história de um conceito. Brasília: Monergismo, 2020.

NIETZSCHE, F. ECCE HOMO: Como se chega a ser o que se é. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008.

NIETZSCHE, F. Crepúsculos dos Ídolos: como se filosofa com o martelo, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SCHELER,M. Ordo Amoris. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2012.

SLOTERDIJK, P. After God. Cambridge/Medford: Polity Press, 2020.

TAYLOR, C. Uma era secular. São Leopoldo: UNISINOS, 2010.

WITTGEINSTEIN, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

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Thiago Holanda Dantas
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Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2