Barbie e o pastiche feminista — Comentário e análise sobre o filme

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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5 min readJan 11, 2024
Imagem gerada no Bing IA

Finalmente, vi o aclamado Barbie, o Filme. E, como esperado, nada do que conservadores gritaram nas redes era verdade, e as feministas também estavam enganadas. O filme é uma fraca peça de marketing para vender bonecas para novas gerações, que coopta a causa feminista para esse fim.

O que merece reflexão é um fenômeno intrigante dentro do atual movimento feminista: a aliança entre o feminismo e o capitalismo midiático, uma dinâmica habilmente explorada pelo filme. Essa união está moldando a maneira como as mulheres escolhem se expressar, introduzindo ideais contraditórios ao próprio feminismo.

Por exemplo, o feminismo alimentado pelo capitalismo midiático levou mulheres de todas as idades a vestirem-se de rosa para assistir ao filme, contrariando as próprias premissas do feminismo que busca desmantelar estereótipos de gênero. Esse uso estratégico da narrativa pela mídia capitalista promove uma dicotomia interessante.

Vocês devem lembrar, não pouco tempo atrás, da afirmação da ex-ministra Damares sobre as cores associadas a meninos e meninas que provocou debates acalorados, evidenciando uma resistência feminista contra a imposição de papéis de gênero predefinidos. No entanto, quando as grandes corporações proclamam que a verdadeira mulher deve se vestir de rosa, muitas aderem acriticamente a essa narrativa, revelando a influência penetrante da mídia na formação de ideias sobre feminilidade.

O filme Barbie habilmente utiliza essa contradição. A boneca, há muito criticada como ícone do estereótipo feminino, ao receber uma quantia substancial para publicidade, transforma-se em um chamado à feminilidade que supostamente deve ser abraçado por todas as mulheres.

Este fenômeno pode ser considerado uma forma de feminismo performático, pois, explora o desejo por igualdade, mas sem buscar efetivamente direitos reais, apenas uma performance em prol do lucro. E, ao que parece, foi eficaz, uma vez que o rendimento nas bilheteiras encheu os cofres da Mattel.

A boneca passou por notáveis transformações para alinhar-se aos conceitos centrais do feminismo da segunda onda. Ao representar diversas identidades profissionais, desde médica até astronauta, a Barbie tornou-se uma narrativa de possibilidades ilimitadas, ecoando o lema feminista: “Nós, mulheres, podemos fazer qualquer coisa”. A boneca, que antes encarnava um padrão inatingível de beleza e perfeição, começou a incorporar narrativas mais inclusivas e empoderadoras. Contudo, essa evolução não teve a mulher como o centro de suas preocupações, mas sim o lucro com a causa.

No filme, em Barbieland as bonecas podem fazer tudo. Barbie (Margot Robbie) explica em uma das cenas que, “Basicamente tudo o que os homens fazem no seu mundo, as mulheres fazem no nosso.” Obviamente, fazer tudo, somente serve para as mulheres de plástico e não se aplica as mulheres de verdade que tem que enfrentar todas suas mazelas diárias. No entanto, a mensagem que o filme quer entregar é que meninas de todo o mundo poderão construir seu próprio reino ideal, onde tudo fica melhor com a ajuda de Barbies com vários tons de pele e profissões. Como o slogan publicitário da Barbie de 1985, afirma: “Nós, bonecas, podemos fazer qualquer coisa”.

Parece que a frase mais famosa do movimento feminista “Não se nasce mulher, torna-se mulher” de Simone de Beauvoir, esta no centro do pensamento de Barbie. Como Beauvoir conclui: “nenhum destino biológico, psíquico ou econômico define a forma que a mulher ou a fêmea humana assume no seio da sociedade” (BEAUVOIR, 1980. p. 9).

Essa ideia, que soava como liberdade nos anos 60 e estava no ideário feminista da criação da boneca em 1959, agora, nos anos 2000, com o impulso do feminismo performático, soa como esvaziamento do feminino. pois, a feminilidade tornou-se um produto comercializado e apropriado por qualquer um/uma.

Comentando sobre as conclusões de Beauvoir, a filósofa feminista contemporânea Judith Butler destaca que o ato de tornar-se mulher implica em um processo complexo de apropriação e reinterpretação, moldado por possibilidades culturais. Nessa perspectiva, ser mulher é, até certo ponto, uma construção social performativa. Isto é, ser mulher é sempre uma ação, sempre um fazer. Como ela afirma: “o gênero revela-se como performance — isto é, constituindo a identidade que se pretende ser. Neste sentido, o género é sempre um fazer, embora não seja um fazer de um sujeito que poderia ser considerado pré-existente ao fazer”(BUTLER, 1999, p.25).

Nesse caso, a definição do sexo também é um fenômeno performático, envolvendo uma distinção fundamentalmente arbitrária entre indivíduos, estabelecida no momento do nascimento ou mesmo antes, e reforçada ao longo do tempo por meio de atos de fala e outros rituais sociais. A declaração “É uma menina/menino!” está além da mera observação; é um ato interpretativo que molda a identidade desde os estágios iniciais da vida.

Butler propõe, portanto, que ser mulher é um ato constantemente reinterpretado e revalidado pela própria mulher. É um processo dinâmico de vir a ser, onde a ideia de feminilidade pode ser modificada de acordo com a vontade individual. Nesse contexto, tanto Barbie quanto mulheres de carne e osso se tornam seres plásticos que podem ser modificados, nesse caso, pelas forças da mídia que as utilizam para maximizar os lucros. A Mattel é tão consciente disso, que não utiliza o termo “feminismo” para descrever a Barbie, mas usa o conceito de “girl power” em sua marca. Obviamente faz isso para diluir a ideia para não ser ofensiva e gerar lucro, perdendo seu poder subversivo original.

Em conclusão, o filme explora e adota narrativas aparentemente feministas, mas que não fazem nada pelas mulheres de verdade. Se utiliza de um feminismo performático para refletir sobre como as mulheres são retratadas e percebidas na sociedade atual. Entretanto, o filme dá uma piscadela para sua audiência menos engajada. Na parte final do filme, depois do encontro com sua criadora, Ruth Handler, a própria Barbie revela que não está alinhada as causas feministas.

Ela não queria vencer o patriarcado, não queria destruir os Kens ou colocar todas as mulheres superiores aos homens. Ela só queria ser uma simples mulher: Ser mãe, ter uma família, conquistar objetivos, poder estudar e, o mais básico para ser uma mulher de fato — ter uma genitália para ir ao ginecologista. No final, Barbie queria ser Bárbara!

FONTES:

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1999.

McMANAMAN, Daisy. Hyper-femininity can be subversive and empowering — just ask Barbie. 2023. Em: https://theconversation.com/hyper-femininity-can-be-subversive-and-empowering-just-ask-barbie-209623

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2