Como viver em comunhão na era do isolamento?

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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7 min readAug 15, 2022

Uma amiga me perguntou sobre qual seria a principal qualidade para congregar em uma igreja. Respondi prontamente que seria a centralidade do evangelho, uma boa pregação e ensino. Entretanto, depois de pensar melhor, não bastaria somente isso para que uma igreja fosse saudável para receber alguém, necessitaria de algo além disso.

Vivemos em uma era pós-pandêmica, na qual congregar em uma igreja se tornou, em muitos casos, assistir a reuniões e cultos online. Nesse contexto, o “ir à igreja” se tornou mera apreensão intelectual. Basta ouvir a pregação e ir pra casa ou desligar o vídeo e sua obrigação religiosa está paga. Mas será que igreja é somente isso? Se resume a absorção de conteúdo espiritual?

Atualmente vivemos uma “happycracia”, termo da socióloga Eva Illouz, ou um governo da felicidade. A felicidade que era o produto de uma vida cheia de ações virtuosas, como nos diz Aristóteles ou o prêmio por uma vida cheia de sofrimentos. Diz Jesus que os pobres, os perseguidos e todos os rejeitados na terra, por sua causa, serão os bem-aventurados na vida futura, e por isso deveriam se alegrar “porque é grande a sua recompensa nos céus” (Mt 5:11,12). Porém essa visão foi distorcida e a felicidade se tornou um objeto que pode ser adquirido aqui é agora pela força de vontade, bastando apenas o esforço individual e a manifestação do eu interior para que ela seja alcançada. A felicidade abarcou todos os aspectos da vida e se tornou uma marca do sucesso. Essa distorção aplicada à vida espiritual torna qualquer comunhão em uma igreja quase impossível. Demandas muito altas e cobranças aos irmãos e líderes tornam esse esforço para viver em comunidade irreais.

Como é bom e agradável quando os irmãos convivem em união!(…)Ali o Senhor concede a bênção da vida para sempre.

— Salmos 133:1–3

Diferente de todas essas falsas ideias de comunhão, que procuram colocar minhas ideias de felicidade e vontades à frente dos outros, o evangelho põe o outro como objeto de meu cuidado e afeto. Como no Salmo 133, a benção só está onde o meu irmão habita.

Paulo, falando aos Coríntios, diz que os irmãos estavam destruindo o próprio Santuário de Deus, quando brigavam entre si. “Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; pois o santuário de Deus, que são vocês, é sagrado (1Co.3.16,17)”. O outro é sagrado, pois Deus habita(οἰκεῖ) nele. Paulo chega a afirmar que os presbíteros e pregadores da igreja eram despenseiros (oikonomos) de Deus, ou administradores (1 Co.4.1). O oikonomos era um escravo que tinha o papel de direcionar o trabalho de outros escravos, sob as ordem de um kyrios (senhor). Um oikos (casa) só poderia subsistir se esse escravo tivesse a capacidade de antecipar necessidades futuras, como armazenar bens e a prudência de saber administrar todas as demandas e as pessoas do oikós . Ou seja, o papel dos líderes era propiciar um ambiente que permitisse a união e a provisão dos irmãos. Somos chamados, assim, a não ser meros ensinadores teológicos, mas organizadores, com o auxílio do Espírito Santo, da Casa de Deus, para que a comunhão possa acontecer entre todos.

Sem a união entre eu e meu irmão não há a benção de Deus, e aquele lugar se torna uma mera reunião, como qualquer agremiação ou clube. “‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento”. Essas são as palavras de Jesus, amar a Deus é a principal meta e a ordem que todos devemos obedecer, mas ela não esta completa se não for feita uma segunda coisa, Ele complementa que há outro mandamento “semelhante a este: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt.22.37–40).

Jesus deixa claro que um amor a Deus que não é refletido no seu irmão é amor de fachada, ou um “amor de palavra”, não de verdade, como seu irmão Tiago bem nos lembrou. Amar a Deus não pode ser um exercício intelectual somente, pois é do amor a Deus e ao irmão que todos os mandamentos estão apoiados. Amor a Deus é, de pronto, reflexo da maneira como trato meu irmão. Se alguém diz: “Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?”(1Jo.4.20). O Apóstolo João dá uma visão quase simplista da ilusão de que é amar a um Deus invisível sem amar ao irmão. Deus faz questão de não ser adorado através de imagens, somente através de amor a si, através do cumprimento de seus mandamentos. Amar ao irmão é um dos mandamentos deixados por Deus, logo, é uma demonstração clara que amamos a Deus. Se não amamos os irmãos visíveis, de carne e osso, somos, obviamente, mentirosos. Não amamos a Deus, mas, talvez, uma ideia de Deus. Deus, na leitura de João, se revela no outro, na imperfeição do outro enxergamos a Deus. Ele está nas lacunas, nos vincos do rosto, nas falhas, nas limitações. Ali Deus se revela em sua graça, mostrando que nós somos do mesmo tipo e que se olharmos bem para nós mesmos, veremos os mesmos defeitos e virtudes que estão no outro.

Na igreja encontraremos pessoas piores que muita gente lá fora. Piores que seu vizinho, piores que seu chefe, pessoas sem educação e que falam alto. Alguém disse certa vez que a igreja é o lugar onde os maiores hipócritas estão. Isso é uma meia verdade, fora da igreja tem muitos também, mas a diferença é que nós deveríamos saber disso. C.S. Lewis declara que a sociedade através das ciências e do conhecimento quer produzir um mun­do cheio de pessoas “boas”. Mas essa ideia não pode ser confundida com a salvação de todos os “bonzinhos”. “Um mundo de pessoas boazinhas, satisfeitas com a própria bondade natural, cegas para tudo o mais, olhando para longe de Deus, estaria tão necessitado de salvação quanto um mundo de infe­licidade — e talvez fosse até mais difícil de salvar” (LEWIS, p.73,2005). Obviamente nem Lewis, nem eu, queremos justificar maus cristãos, mas somente mostrar que melhorar o comportamento não é sinônimo de alguém salvo. As pessoas salvas melhoram seus comportamentos, mas não é da velocidade que gostaríamos. Elas podem estar em estágios que se mentiam compulsoriamente, agora mentem de vez em quando; se eram viciados em sexo e não resistiam, agora lutam para não cair na armadilha; se comiam uma caixa de Bís em 5 minutos, agora comem apenas um na semana.

No final somos calhambeques que se tornarão Ferraris. Nesse processo temos que conviver com a máquina velha, almejando a potência que seremos. Sendo assim, devemos olhar para as nossas próprias limitações e misérias para alcançar uma comunhão verdadeira.

Depois dessa volta toda, voltemos à questão. Como posso viver em comunhão? Acho que ficou bem claro que não é colocando minhas ideias sobre o que seria comunhão, que encontraremos a resposta. Cristo deve ser a resposta e o centro de todas as relações. “… tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele existe antes de tudo o que há, e nele todas as coisas subsistem” (Cl.1.16–17). Bonhoeffer afirma que Cristo é o intermediador entre todas as coisas. Entre Deus e os homens; entre homens e homens e entre tudo ao redor. N’Ele se inicia, se perpassa e termina o caminho entre tudo e todos.

Cristo está entre mim e os outros. Não sei de antemão o que significa o amor aos outros com base na ideia geral de amor que surge de meus desejos emocionais. Tudo isso pode ser ódio e o pior tipo de egoísmo aos olhos de Cristo. Só Cristo em sua Palavra me diz o que é o amor.(…) O amor egocêntrico constrói sua própria imagem das outras pessoas, sobre o que elas são e o que devem se tornar. Leva a vida da outra pessoa em suas próprias mãos. O amor espiritual reconhece a verdadeira imagem da outra pessoa vista da perspectiva de Jesus Cristo. É a imagem que Jesus Cristo formou e quer formar em todas as pessoas.(BONHOEFFER, 2005, p.43–44)

Neste caso, o amor verdadeiro não pode vir dos meus desejos carnais e emocionais, ele deve vir somente de Jesus. Portanto, O olhar para o outro deve ser o olhar de Cristo. Devemos, assim, suportar uns aos outros (Cl.3:13; Ef.4:2). Essa ordem de suportar diz respeito ao dever que cada cristão tem de aguentar aqueles mais difíceis de se relacionar no corpo de Cristo. Devemos suportá-los , pois, na realidade, também somos difíceis muitas vezes. A ordem bíblica é que no corpo de Cristo, devemos suportar, apoiar, aguentar uns aos outros em amor em todo os instantes, principalmente nas horas mais difíceis, pois Cristo não nos abandonou mesmo quando não fomos as pessoas mais agradáveis.

Finalmente, se entregue ao outro, seja casa de Deus para o seu irmão, o acolha e o veja através dos olhos de Cristo, deixe suas demandas emocionais, egoístas um pouco de lado. Fazendo isso, acredito ser possível aprender a difícil arte de viver em comunhão.

C. S. Lewis. CRISTIANISMO PURO E SIMPLES, 2005

Dietrich Bonhoeffer. Life Together and Prayerbook of the Bible, 2005

OIKONOMOS em: [https://en.wikipedia.org/wiki/Oikonomos]

Edgar Cabanas e Eva Illouz. Happycracia: Fabricando cidadãos felizes, 2022

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2