Matrix Ressurrections — A verdade não é (mais) o bastante

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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7 min readJan 22, 2022

Uma resenha do novo MATRIX RESSURRECTIONS

O filme Matrix Ressurrections é ruim. Não recomendo para fãs, que como eu, cresceram com a lembrança do grande filme de 1999 e as, nem tão boas, sequências de 2003. Mas, se você não for um fã “hardcore” e possui algum interesse cultural, essa nova sequência traz uma mudança de paradigma, que deixa interessante para realizar uma analise de como se olhava a realidade em 1999, e 22 anos depois em 2021, que vale a pena.

No filme de 1999, Neo (Keanu Reaves) é apresentado ao dilema de tomar ou não a pílula vermelha (isso, hoje, virou símbolo para aqueles que não aceitam ser enganados, seja pela mídia, pelas feministas, pelos comunistas ou qualquer outra teoria conspiratória). No filme, Morpheus (Laurence Fishburne), faz a seguinte proposta:

Esta é a sua última chance. Então você não será capaz de recuar. Se você tomar a pílula azul, fim da história: você vai acordar em sua cama e acreditar no que quiser. Se você pegar o vermelho, estará no país das maravilhas, e eu mostrarei a você até onde vai a toca do coelho. Lembre-se de que a única coisa que ofereço é a verdade, nada mais.

A verdade, em 1999, era um objeto com algum valor. Somente a promessa de encontrar a verdade era um estímulo para que Neo tome a pílula vermelha e encontre a cruel realidade, no qual, o mundo real, sujeito e controlado pelas máquinas, se encontrava.

Contudo, será que a verdade, em 2021, possui algum valor? Será que a promessa de Morpheus atenderia um novo Neo (desculpe a redundância), mergulhado na realidade virtual?

Para que fosse relevante para uma nova audiência, o novo filme deveria ter um Morpheus atualizado. Não poderia ser o programa antigo, enrijecido, por isso um rejuvenecido Morpheus é apresentado, ele é uma nova versão de Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II), uma junção do agente Smith e do antigo Morpheus, sendo assim, “as duas forças opostas que levaram Neo a se tornar quem ele precisava ser”. O Novo Morpheus, realiza uma proposta diferente:

“Se você quiser sair, você vai tomar essa pílula[vermelha], mas se você acredita estar, onde você pertence, você pode voltar a isso[pílula azul]todos os dias, de novo e de novo, para sempre.”

A proposta do novo Morpheus não é mais “a verdade”, pois ela não possui mais o poder de gerar uma mudança tão drástica. A proposta, agora, é escapar da rotina entediante. O velho Morpheus queria que Neo visse a realidade, observasse por si só, para que soubesse que vivia em uma mentira. Nesse outro momento, Morpheus deseja que ele tenha uma nova experiência, uma nova rotina empolgante. Não há mais realidade “lá fora”, pois não há mais Zion, não há mais um salvador. Neo é posto em dúvida, as máquinas, que antes eram inimigas, tornaram-se aliadas. No novo Matrix, somente através da junção de maquinas e humanos que é possível criar uma Nova Zion. Em Ressurrection, a força da verdade e a luta contra as máquinas não é mais relevante, portanto, a verdade é substituída pelas interpretações da realidade. Diz-nos, Earp, que o filme é um hino à força das narrativas:

Aqueles personagens que tentam desmerecer nossa capacidade de tecer ficções — principalmente o terapeuta, e o capitalista Agente Smith, que quer transformar narrativas em mais produtos a serem vendidos — são os vilões do filme. Seus heróis são aqueles que abraçam totalmente o poder das histórias que criamos para nós mesmos, sejam elas videogames ou narrativas complexas sobre nosso próprio passado. Afinal, embora possa ser sombrio imaginar que o mundo externo é sempre filtrado através de uma experiência subjetiva instável, isso significa que nossas fantasias são tão poderosas — tão transformadoras — quanto qualquer coisa “real”. O mundo é para sempre o que fazemos dele.

O novo Morpheus, não quer revelar a verdade, que está por trás da Matrix, mas deseja ser um psiquiatra. Ele quer prescrever um remédio para Neo fugir da realidade, para que sua fantasia, seja mais “real”, que a programada pelas máquinas. Todos, na realidade, se tornaram terapeutas. A pílula vermelha e a pílula azul são indistintas. Não há mais como escapar da Matrix, na realidade, não há por quê escapar da Matrix. A verdade e a mentira se tornaram apenas narrativas, melhores contadas ou não. O que abre um espaço para um novo tipo de liberdade, “a liberdade de intervir e reescrever ficções que nos dominam. Como nosso mundo tem essa composição, isso significa que a Matrix também é uma bagunça!”.

Essa virada para as narrativas, mostra a descrença, atual, que haja alguma salvação sem o auxílio das máquinas. O famoso ditado grego “Deus Ex Machina” ou Deus fora do mecanismo, é substituído pelo “Deus Machina”, que é o nome da empresa de videogames que Neo trabalha e é gerenciada pelo novo agente Smith (Jonathan Groff). Ou seja, Deus está imbricado na Matrix, e a salvação (se há alguma) somente pode ser alcançada dentro dela, seja na Matrix ou na realidade-tornada-Matrix (alguém já ouviu falar em Metaverso?). A Matrix, como conhecíamos, era uma simulação da realidade, mas agora, é uma trilogia de jogos projetados pela Deus Machina. O filme Matrix é uma narrativa dentro da narrativa. O novo Smith, explica a Neo que: “Nossa amada empresa controladora, a Warner Bros., decidiu fazer uma sequência da trilogia”. O próprio filme brinca com essa realidade dentro da realidade. Assim, a Matrix é apenas uma realidade dentro da realidade e também uma narrativa dentro da narrativa, uma “noção pós-moderna de que não existe uma ‘realidade real’ final, apenas uma interação da multiplicidade de ficções digitais”.

Uma grande novidade, na nova versão de Matrix, é a substituição do Arquiteto pelo Analista, enquanto o primeiro “procurou controlar as mentes humanas através de matemática e fatos frios e duros, o Analista gosta de ter uma abordagem mais pessoal, manipulando sentimentos para criar ficções que mantêm as pílulas azuis na linha. […] O Analista diz que sua abordagem fez os humanos produzirem mais energia para alimentar-se. as Máquinas do que nunca, ao mesmo tempo em que as impede de querer escapar da simulação”.

A passagem, do arquiteto para o Analista, reflete mais um dos temores contemporâneos. Ter um Arquiteto, controlando o mundo, com matemática, razão, narrativas fixas e etc., era o grande temor pré-2000, onde a crença em um Deus poderoso, controlador e nas máquinas como inimigas, faziam algum sentido. Nesse novo momento, são os Analistas que têm o controle, aliados à ciência “dura” e às máquinas, manipulando as mentes através de discursos, ressignificações e medicamentos para aumentar a performance das “baterias” humanas. Zizek percebe esse discurso manipulativo para “performar” melhor, quando diz que a Matrix, “deve manipular a experiência dos humanos que servem como baterias para que eles experimentem mais prazer. As próprias vítimas têm de desfrutar: Quanto mais os humanos desfrutam, mais prazer extra pode ser extraído deles”. E quanto mais prazer, mais se pode retirar energia e eles necessitam de mais “pílulas azuis”. Este é o ciclo vicioso atual e é como o mundo, liderado pelos Analistas, funciona.

É o Analista que tenta convencer, um confuso Neo, a não tomar a pílula vermelha, não por força bruta, dizendo que aquilo não era real, não era um jogo, mas a realidade era aquilo que, com o auxilio das pílulas azuis, era apresentado. Quem o retira desse dilema é a hacker Bugs,(que têm cabelos azuis, será coincidência?). O que se percebe é essa incapacidade de diferenciar mocinhos e bandidos, todos, de certa maneira, querem manipular Neo a fazer o que desejam. Neo se tornou um mero fantoche nas mãos dos dois lados.

Para não me estender mais, o filme termina com Neo e Trinity, sem interesse algum pela busca da verdade, porém estão muito gratos pela jornada. Os dois, ao invés de matar o Analista, “agradecem a ele. Afinal, através de seu trabalho, eles descobriram o grande poder da redescrição, a liberdade que vem quando paramos nossa busca pela verdade, seja lá o que esse conceito nebuloso possa significar, e lutamos para sempre por novas formas de nos entendermos. E então, de braços dados, eles decolam, voando por um mundo que é deles para fazer”

Isso é no fim das contas, como diz Zizek, apenas “uma noção pós-moderna de que não existe uma ‘realidade real’ final, apenas uma interação da multidão de ficções digitais”. Matrix Ressurrections, por pior que seja, reflete o mundo pós-metafísico Anglo-europeu, um mundo sem Deus, sem salvação e sem busca pela verdade, somente suas interpretações e narrativas.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2