Metamorfose — A monstruosidade do ser humano na modernidade

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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3 min readJun 14, 2024

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso… Metamorfose| Franz Kafka

Em “A Metamorfose”, Franz Kafka apresenta a história de Gregor Samsa, um caixeiro viajante que deixa suas vontades e desejos para trás em favor do sustento de sua família. Gregor tem grandes aspirações para sua talentosa irmã, Grete, e deseja matriculá-la em uma escola de música. Ele também sustenta seu pai, que não trabalha devido a problemas de saúde, e sua mãe, que é dona de casa. Sua vida gira em torno das viagens como caixeiro viajante e seus descansos momentâneos em casa. Sua rotina é quebrada quando, numa certa manhã, Gregor acorda transformado num inseto gigante.

Gregor passa a tentar se adequar à sua nova forma. Tem dificuldades para se mover, se comunicar e se alimentar. Mas nada disso o incomoda mais do que o fato de estar atrasado para o trabalho. Perder um dia o põe em crise mais do que sua bizarra transformação. Isso revela o estado de desumanização que seu trabalho causava.

Antes mesmo da transformação física, Gregor já era um “inseto asqueroso", ele é um “rola-bostas”, literalmente é assim como a empregada da casa o chama, Mistkäfer, Mist (“escremento”) +‎ Käfer (“besouro”). Ele já era um bicho, só não havia se dado conta. Sua transformação já havia começado bem antes, por sua rotina extenuante. No momento que se transforma, ele é rejeitado por sua família que somente o enxergava como um burro-de-cargas, mero fazedor de dinheiro. Com a doença de Gregor, seu pai se recupera milagrosamente e arruma um emprego, assim como sua mãe e irmã. Todos passam a sair a busca do sustento que não viria mais de Gregor.

Para Peter-André Alt (2005), a figura do inseto torna-se uma expressão da existência privada de Gregor. Da maneira que ele fora reduzido a cumprir suas responsabilidades profissionais, ansioso para garantir seu avanço e aflito com medo de cometer erros. Gregor é a personificação de uma vida profissional funcionalista. Ele é uma criatura moldada e deformada por uma existência puramente utilitária, onde seu valor é medido apenas por sua capacidade de trabalhar e sustentar a família.

O valor de Gregor como filho é ignorado no momento em que ele não pode mais servir à família. Apesar de seu amor por sua irmã, a quem ele queria pagar os estudos no conservatório de música, ela é a primeira a querer se livrar dele após a transformação. Quando Gregor, já transformado em monstro, assusta os inquilinos que alugaram um quarto na casa de seus pais, é Grete quem sugere que devem se livrar dele. Ao ouvir isso por entre a porta aberta, perde a vontade de viver e planeja sua morte. A condição de Gregor como filho e irmão deixa de importar, e a família passa a querer escondê-lo e, eventualmente, se livrar dele.

Há muitas interpretações para essa novela, porém gostaria de salientar a reflexão sobre a condição humana no início do século XX, um período marcado por profundas transformações políticas, industriais e pelo crescente capitalismo, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Nesse contexto, o indivíduo já experimentava a alienação e desumanização resultantes das mudanças sociais.

A metamorfose física de Gregor Samsa em um inseto monstruoso simboliza a metamorfose do ser humano em um animal, pronto para ser usado e abatido. Gregor, ao refletir sobre seu trabalho como caixeiro-viajante e comerciante de tecidos, recorda da sua rotina de viagem, o transporte ruim, a alimentação irregular e as relações humanas que eram “sempre mutáveis, nunca duradouras, que nunca se tornam genuínas”.

A condição de Gregor como um “inseto humano”, repulsivo e rejeitado por sua própria família, é uma metáfora para a forma como os trabalhadores eram (e muitas vezes ainda são) vistos: meros instrumentos de trabalho, prontos para serem explorados e depois descartados. A transformação grotesca de Gregor sublinha a desumanização sofrida pelos indivíduos em uma sociedade cada vez mais mecanizada e funcionalista.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2