O DEUS DOMESTICADO

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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4 min readNov 1, 2019
fonte: google images

pois Yahweh, o teu SENHOR, o Eterno, é Deus zeloso; é fogo consumidor! Deuteronômio 4:24

No encontro com Deus, há um certo espanto e assombro quando Ele surge. Ele fala por entre raios e trovões, sua voz é potência e aqueles que o encontram estão apavorados. Há a nítida impressão do poder e onipotência que pode consumir. Esse sentimento religioso Rudolf Otto chama de mysterium tremendum:

Às vezes, a sensação disso ocorre como uma maré suave que invade a mente com um clima tranquilo de adoração mais profunda.Pode passar para uma atitude mais firme e duradoura da alma, continuando, por assim dizer, excitante, vibrante e ressonante, até finalmente desaparecer e a alma retomar seu humor “profano” e não religioso da experiência cotidiana (…) Pode se tornar a humildade silenciosa, trêmula e sem palavras da criatura na presença de — quem ou o quê? Na presença daquilo que é um mistério inexprimível e acima de todas as criaturas.[1]

O que Otto quer exprimir é o sentimento de encontro com um ser muito maior do que qualquer individuo e esse mysterium nos revela alguém que pode acabar com tudo somente com o poder da sua voz. Pondé mesmo sendo um não-religioso, consegue exprimir o encontro com Deus de forma belíssima: “Essa transcendência é “violenta”. Por isso os judeus, quando invocam Deus, cobrem suas cabeças e viram de costas para a arca onde se guarda a Torá nas sinagogas,(…)Diz a tradição que ninguém pode ver a face de Deus e sobreviver”[2]. Esse é sem dúvida o encontro com o Deus judaico-cristão. Um encontro violento, onde pode-se morrer na sua presença e não é possível sair o mesmo após o encontro. Há uma dualidade entre a noção de pequenez que é acompanhada pelo espanto e o temor, daquele que encontra o divino, e ao mesmo tempo o amor que emana de seu ser. É amor e temor lado a lado, que faz com que esse Ser possa atrair àquele que d’Ele se aproxima.

Deus se mostra como santo, a palavra usada é קודש, (kadesh), que evoca a ideia de separação do profano e proximidade da alteridade de Deus,ou seja, Deus é aquele que é separado, o totalmente outro, não havendo nenhum tipo de comparação com a vida humana. Nesse encontro há uma relação do ser mortal com o ser eterno. O filosofo Martin Buber dá o nome dessa relação de eu-Tu. O que Buber entende como religião é a presença, o “estar-diante-de” no encontro com o Tu eterno. o Eu é modificado pelo encontro com o TU[3]. Vemos isso quando Jacó se encontra com Deus e ali é ferido na coxa e tem seu nome modificado, ou quando Isaías ao deparar-se com Aquele que é “Santo, Santo, Santo”, só pode constatar “ai, de mim”. É essa magnifica relação que o homem tem no encontro com o divino.

É esse Deus poderoso que ordena para tirar as sandalias pois o lugar é santo. É esse contexto de santidade e exclusividade que o Divino requer. E quando a relação de alteridade com o divino se acaba, o que se perde não é Deus, esse continua sendo soberano e todo-poderoso, o que se perde é o próprio homem. Sem o TU não é possível ser EU, sem a noção de encontro com o Ser Eterno, o que resta é um deus que parece ter sido domesticado, esse é o deus da religião contemporânea. Não é mais santo e poderoso, mas Ele se desfaz de todo seu poder e glória e vira um servo de seus servos. Um mero fantoche ou um velhinho cansado, como diz C.S Lewis, “que quer ver a molecada feliz”.

Nesse ponto Feuerbach tem razão, pois Deus virá a projeção do ser humano. Deus se transforma na manifestação da essência do homem, e somente isso. Deus é somente um ser criado à imagem e semelhança do ser humano. Nessa inversão do eterno para o mortal, a espiritualidade se torna auto-adoração do ego, a “umbigolatria” como religião oficial do homem contemporâneo, que se põe no centro do universo.

Sem o assombro do divino, O todo-poderoso,se torna um leão sem dentes, transcendência domesticada, com data e horário para acontecer. Triste fim do homem que quis ser deus e achando que tornou-se o tal, se enxerga no fim solitário e se vê no espelho sem mais o que adorar, só resta a adoração a si e as coisas ao redor. Antes tinha o Deus de todo o universo como alvo de sua devoção, agora tem seus olhos no pequeno e limitado mundo de si, perdido no ego hipostasiado. O que o homem não sabe é que acaba se tornando o que adora, como o salmista diz:“Tornem-se como eles aqueles que os fazem e todos os que neles confiam. (Sl.115.8), esses humanos que abandonaram a Deus, acabam se tornando pequenos como os objetos que adoram. Como os judeus no deserto que deixaram o Deus Eterno e foram adorar ao bezerro de ouro, assim, acabam adorando falsos deuses e tornando-se como os objetos que adoram, meras coisas descartáveis.

BIBLIOGRAFIA:

[1]https://www.britannica.com/biography/Rudolf-Otto/The-Idea-of-the-Holy

[2]PONDÉ, L.F. Os dez mandamentos (+um). São Paulo:Três Estrelas.p.20

[3]VON ZUBEN, N.Tu Eterno e religiosidade no pensamento de Martin Buber. Horizonte, Belo Horizonte, v. 13, n. 38, p. 941–968, abr./jun 2015

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2