O eterno presente: Onde não há passado, presente ou futuro

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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5 min readMay 23, 2021

Será que estamos no fim da história?

Planet of the Apes (1968) directed by Franklin J. Schaffner

Jorge Luis Borges, escritor argentino, conta a história de um homem, chamado Ireneo Funes, que tinha a incrível capacidade de não esquecer. A espantosa habilidade ocorre depois que Ireneo cai de um cavalo e sofre um grave ferimento na cabeça, e adquire o talento ou a maldição, de se lembrar de tudo. Todas as formas de uma nuvem ou movimentos de uma crina de cavalo, tudo era uma coisa nova. Funes não conseguia criar generalizações, tudo era único e especial. Ele cria um sistema de contagem, no qual cada número tinha um nome único, claro que somente ele sabia disso. O interessante nesse conto é, como relata borges, a incapacidade de Funes de pensar, ele diz: “Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”.

O prodigioso Funes, era uma máquina de guardar memórias, mas não conseguia pensar. Do que adiantava ter, como o próprio Funes relata, “Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília”, de que vale ter uma memória prodigiosa se, no final: “Minha memória, senhor, é como depósito de lixo”.

Funes é um retrato de nossa sociedade contemporânea. Revela a capacidade contemporânea de nunca esquecer, e essa habilidade está disposta a todo o ser humano com acesso à internet. Sendo assim, a vida completa está guardada para sempre. Mas será que isso é benéfico? Como Funes, estamos com tantas lembranças, que não há espaço para pensar. Isso trás, ao invés de uma vida melhor, com acesso ao conhecimento para melhorar nossas vidas, na realidade, uma série infindável de informações, que misturadas às maravilhas da humanidade, está, como conclui Funes, um grande depósito de lixo.

O teorista político, Francis Fukuyama, em seu ensaio The End of History?, argumenta que, após a queda do Muro de Berlim e a derrota da União Soviética, chegaríamos ao fim da história. Para Fukuyama, a humanidade atingiu “não apenas (…) a passagem de um determinado período da história do pós-guerra, mas o fim da história como tal: ou seja, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano”. O fim da história, seria, na realidade, não um fim literal, mas, devido o fascismo e o comunismo estarem derrotados, não haveria mais desimpedimentos para a consumação da democracia liberal. A história, deste momento em diante, tornaría-se um estado de estabilidade da vida humana, sem maiores percalços no futuro e nem mudanças na sociedade. Esse fim, como previsto por Fukuyama, não aconteceu na história, mas se realizou virtualmente. Na internet, podemos ver o presente de forma instantânea, através das telas dos smartphones; conseguimos prever com precisão a chegada de nossa comida, transporte ou o clima com antecedência , e por fim, visualizar e até modificar o passado. Toda a história está consumada perante a tela e estamos como que juízes sobre toda o passado. A internet trouxe a (falsa) sensação de poder julgar toda a história do alto de nosso avanços tecnológicos e de ter a impressão que a cada novo evento, transmitido pelas redes eletrônicas, o apocalipse estaria às portas.

A paranoia de se achar senhores da história, obviamente, coloca um peso sobre cada ser humano. Mas essa falsa sensação, ao invés de criar seres evoluídos e ativos, forma indivíduos cada vez mais medrosos e con-formados com a realidade ao redor. Fukuyama pode ter se equivocado em parte, mas ele diz no fim do seu ensaio, como seria a época do fim da história:

O fim da história será um momento muito triste. A luta por reconhecimento, a disposição de arriscar a vida por um objetivo puramente abstrato, a luta ideológica mundial que suscitou ousadia, coragem, imaginação e idealismo, serão substituídos pelo cálculo econômico, a solução interminável de problemas técnicos, preocupações ambientais e a satisfação de demandas sofisticadas dos consumidores.

O tempo do fim, é o ápice da razão instrumentalizada, sendo utilizada para o aumento de bem estar e da alienação do homem, novamente posto como o centro do universo, porém um universo particular. Ele está com suas demandas todas atendidas, entretanto, perdido com tantas opções e objetivos que não lhe dão nenhum tipo de desafio. “No período pós-histórico”, continua Fukuyama, “não haverá arte nem filosofia, apenas o cuidado perpétuo do museu da história humana. Posso sentir em mim mesmo, e ver nos outros ao meu redor, uma nostalgia poderosa pelos época em que a história existia”.

CD Dua Lipa | Future Nostalgia(2020)

Eliane Glazer, comentando essa passagem, diz que “esta visão não parece exatamente correta? Parecemos estar perdendo o sentido claro de nossa história e de nosso futuro, vivendo em um presente perpétuo em que esquecemos que as coisas eram diferentes no passado e que existem, portanto, intercaladas”. Isso fica claro nas musicas pop atuais, que misturam temas dos anos 80 com harmonias dos 60 e instrumentos dos 2000. Me vem à memória o album da cantora Dua Lipa, Future Nostalgia, um retrato do mal-estar atual: Sentir saudades, não do passado, mas de um futuro nunca vivido.

Glazer, saudosa do passado, chega a conclusão que: “Sinto falta da história, assim como sinto falta da minha própria história e das visões do futuro de minha infância”. No mundo hightech não há historia, nem futuro, tudo está compilado em uma continuação ou um “eterno presente”. Mas o que fazer diante disso?

O pobre Ireneo morreu, com seus 20 e poucos anos de congessão pulmonar, com o mundo todo na cabeça, mas sem poder pensar absolutamente em nada, nós, se não cuidarmos, morreremos de uma “violência neuronal”, termo do filósofo Coreano, Byung Chul-Han, essa “violência neuronal” é provocada pelo excesso de positividade, por não haver espaços, intervalos, são pequenos enfartos causados pelo excesso de informações e dados. São esses males que marcam nosso tempo , como a depressão, a Síndrome de Burnout, Hiperatividade entre muitos outros “enfartos”.

Para viver nesse “Novo tempo do mundo”, como diria Paulo Arantes, assumindo que somos como Ireneo Funes, não podendo esquecer do passado, mas em um presente perpétuo, com a capacidade de absorção de cada instante, sem espaços ou intervalos. A solução, pode ser, como o próprio Ireneo fez, viver uma auto-alienação, ficar em escuro completo para não absorver mais informações, somente recontando o passado. Talvez não precisamos ser tão radicais, mas escolher ficar um pouco longe de toda loucura virtual para absorver, não somente informações, mas aquilo que consideramos importante e descansar um pouco dessa loucura, seria um bom pontapé de partida.

BIBLIOGRAFIA:

BORGES, Jorge Luis. Funes, o Memorioso. Trad. de Marco Antonio Franciotti In:Prosa Completa, Barcelona: Ed. Bruguera, 1979, vol. 1., pgs. 477–484 :http://www.gradadm.ifsc.usp.br/dados/20141/SLC0630-1/Funes,%20o%20Memorioso.pdf

FUKUYAMA, Francis (1989). “The End of History?”. The National Interest (16): 1–18.

GLASER, Eliane. Bring back ideology: Fukuyama’s ‘end of history’ 25 years on. In: https://www.theguardian.com/books/2014/mar/21/bring-back-ideology-fukuyama-end-history-25-years-on

HAN, Byung Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Giachini. 2º Edição Ampliada .Petrópolis: Vozes, 2017.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2