O Evangelho de Marcos — Uma Introdução Barulhenta

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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8 min readJan 27, 2019
Bernardino Mei — Jesus purificando o templo (1655)

A tese que irei sustentar é que o evangelho de Marcos tenta colocar o expectador no meio de toda a ação, fazendo com que o leitor descubra por si, quem é esse Jesus de Nazaré. Um tipo de revolucionário, o filho de Deus ou um charlatão?

O evangelho de Marcos é um livro de ação. Somos convidados a ver Jesus em uma frenética atuação durante seus 3 anos de ministério, o que fica evidenciado por seus curtos 16 capítulos. O relato é cru, não tem a forma de Mateus, a precisão de Lucas, nem muito menos a Cristologia refinada de João, o Jesus de Marcos tem pressa, ele não consegue descansar, nem aqueles que o acompanham, o evangelho pode ser descrito como uma road trip, uma viagem intensa pela Judeia de um bando de jovens e seu jovem rabi, partindo dos rincões da Galileia, na parte mais pobre do império, para a capital Jerusalém, na opulência do templo de Herodes. Essa intensidade que mais parece um show barulhento de rock ’n’ roll, fez com que o rockeiro Nick Cave, um anglicano, descrevesse o evangelho desta maneira:

Ele(Marcos) fez isso com tanta insistência ofegante, tamanha intensidade narrativa compulsiva, que se lembra de uma criança contando uma história incrível, acumulando fatos sobre fatos, como se o mundo inteiro dependesse disso — o que, é claro, para Marcos, era verdade. ‘Diretamente’ e ‘imediatamente’ ligam um evento a outro, todo mundo ‘corre’, ‘grita’, é ‘espantado’, inflamando a missão de Cristo com uma deslumbrante urgência. O Evangelho de Marcos é um barulho de ossos, tão crus, nervosos e limitados que a narrativa dói com a melancolia da ausência.[1]

Essa urgência é devido ao espirito escatológico que abarca todo o Novo Testamento e Marcos como os outros autores acreditavam que Cristo viria em breve, isso fica agravado pelo contexto que o livro foi escrito provavelmente entre 66–70 d.C, durante a perseguição de Nero aos cristãos em Roma ou durante a revolta judaica, como sugerido por referências internas sobre a guerra na Judéia e à perseguição[2], ou seja, na iminência da guerra dos Judeus contra os romanos ou já na destruição de Jerusalém[3]. Sendo assim, acreditava que o fim estava próximo ou já estava vivendo nele, por isso esta ansiedade em contar o que Jesus havia feito, e revela certo atropelo na narrativa e vontade de prontamente contar sua história. O que fica nítido na palavra chave desse Evangelho que é euthys, o qual ocorre cerca de quarenta e uma vezes e foi traduzido para logo, imediatamente, sem demora, dentro em pouco[4], tudo é feito com vigor, nenhum ato de Jesus é recebido sem assombro ou maravilha, e é nesse turbilhão de ação, digno de um épico hollywoodiano, que a historia é apresentada.

Por isso, Marcos inicia seu evangelho anunciando que esse é o “principio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus(Mc.1.1). Marcos não quer perder tempo com genealogias, a infância e os relatos de sua juventude antes do ministério iniciar somente é apresentado João Batista, aquele que veio endireitar o caminho(1.3) e batizar Jesus. João é o único “crente” a discernir Jesus como filho de Deus. Parece que somente João e Marcos sabem sua identidade, as pessoas mais próximas não compreendem quem ele é. Após o encontro entre os dois, Jesus é batizado(1.9 ) e é imediatamente empurrado para fora(ekballo) pelo espirito(1;12), diferentemente dos relatos de Mateus e Lucas onde ele é gentilmente conduzido para o deserto.

Na primeira parte do livro (1–8), Marcos se preocupa em falar quem Jesus é. Vemos isso na forma que sua família busca explicações para suas ações,(3.31–35 ), seus amigos acham que ele ficou louco(3.21 ) e seus discípulos não fazem a mínima ideia de quem é esse Nazareno(4.41), os discípulos não conseguem entender que Jesus é o Cristo, mas é intrigante como sai da boca de um endemoniado a primeira afirmação de que ele é o “Filho de Deus”(5.6).

No centro do livro (8.27–9.10), no monte da transfiguração, Jesus revela quem realmente é, quando sua natureza divina é revelada, mas antes, Jesus faz a pergunta que parece mudar o tom do livro: Quem os homens dizem que eu sou?(8.27), depois de duas respostas equivocadas, Pedro responde: “Tu és o Cristo.”(8.29), mesmo Pedro após tal afirmação, não entende e é repreendido de forma áspera: “Para trás de mim, Satanás!(8.33), nem aquele que chegou mais próximo de compreende-lo, realmente o entendeu.

A pergunta feita por Jesus aos discípulos foi posta com maestria por Marcos, logo após a cura de um cego(8.22–25) tocado duas vezes por Jesus, da primeira vez ele vê “pessoas como árvores”, no segundo toque ele vê claramente. Esse milagre aparentemente incompleto, revela o fator didático dos cegos em Marcos, o mesmo ocorre com o cego Bartimeu(10.46–52), os dois cegos revelam a cegueira espiritual dos discípulos que não compreendiam seus ensinamentos e precisavam ter seus olhos abertos. Os dois milagres abrem e fecham essa grande seção de ensinamentos acerca da identidade de Cristo e do Reino de Deus(8.27–10.44), dos quais os discípulos entendem de forma equivocada. Eles primeiramente não entendem quem Jesus era,depois, eles não entendem o que era o Reino de Deus, e seu discipulado. Para Jesus esse processo é “desconfortável de reorientação e de abandono dos valores egocêntricos da sociedade humana, em favor da organização divina, na qual”muitos serão derradeiros, e muitos derradeiros serão primeiros”(10.31)”[5]

Essa cegueira também atinge os leitores, “a exemplo dos discípulos, enxergamos sem discernir”[6]. Marcos parece nos convidar para descobrir quem é Jesus e tirarmos nossas próprias conclusões:

Os leitores de Marcos sabem disso tudo, o que significa que ele trazem consigo indícios interpretativos críticos que não têm influência sobre as personagens da história, até quase o final da narrativa.(…)Os leitores de Marcos têm em mãos um extenso repertório de informação com o qual avaliam e respondem ao desenvolvimento do enredo, e as conclusões alcançadas pelas personagens.[7]

Um dos temas principais de Marcos é o segredo messiânico[8], Jesus não permite que os endemoninhados revelem sua identidade, que os curados não falem sobre sua cura, suas mensagens são escondidas por entre parábolas e seus discípulos também não conseguem entender as implicações dos milagres. Somente os leitores que possuem a chave do segredo,“o texto pode ser entendido de dois modos. Dentro da história, as personagens vêem uma coisa, enquanto de fora, os leitores vêem outra.”[9], mas mesmo tendo todas essas informações de antemão,ainda fica a pergunta: quem é o Jesus de Marcos?

Marcos constrói Jesus com base nas pregações e relatos de Pedro [10], logo o mais espontâneo dos apóstolos, esse Jesus visto das lentes de Pedro, o qual recebe a repreensão de seu mestre, sendo chamado de diabo, é irascível, tímido e impetuoso, e é esse Jesus que nos é apresentado. Um Jesus que está em embate com todos os lados, mesmo nós leitores somos convidados a entrar nessa guerra.

Dentro do livro, Marcos faz uma divisão, dividindo seu publico em dois: Os que irão compreender a mensagem e os que não podem entendê-la. Todo o livro pode ser sintetizado nos versículos 4.11–12, que é uma citação de Isaías 6.9-10 que diz:

Ele lhes disse: “A vocês foi dado o mistério do Reino de Deus, mas aos que estão fora tudo é dito por parábolas,
a fim de que, ‘ainda que vejam, não percebam, ainda que ouçam, não entendam; de outro modo, poderiam converter-se e ser perdoados! ’”

Jesus tem a mesma missão de Isaías, falar para um povo que não irá compreendê-lo, mas diferentemente de Isaías,que teve que conviver com a frustração de não poder ser entendido, Jesus tem a capacidade de fazer com que seus escolhidos possam entender no momento propício.

Na segunda parte do livro(11–16), ele trata de como o impetuoso rabino da Galileia, se torna o Rei messiânico. Seu caminho começa pela entrada triunfal por Jerusalém(11.1–11), sua entrada no templo, expulsando todos os que faziam comercio, o que faz com que seus detratores comecem a arquitetar planos mais contundentes para matá-lo(1.15–16). Seus ensinos se tornam mais duros contra os lideres religiosos e suas facções, gerando maior resistência. Nesse livro são os maus os mais inteligentes, são eles que percebem a ameaça desse rabino sem pedigree, e por isso querem eliminá-lo, por outro lado, seus discípulos continuam sem entender.

Se Marcos é um livro de ação, isso também traz muita reação. Cada vez que Cristo efetua mais atos miraculosos, cada vez mais ele vai encontrando resistência. De sua aceitação popular na Galileia(1.14–6.13), do crescimento da oposição(6.14–8.26), até o embate final em Jerusalém, abraçando seu destino — a cruz, levando à sua morte(Caps.11–16), parecendo que os maus finalmente venceram.

Mas não é bem assim, Cristo é que sai vencedor e tanto os poderosos, quanto os humildes devem reconhecer sua divindade.“A morte de Jesus na cruz, que constitui o momento mais sombrio do mencionado evangelho, não é o fim. O poder de Deus irrompe, e um estranho, como é o caso do centurião romano, não é excluído — e compreende.”[11]

E como poderia se adivinhar, não são seus discípulos que compreendem quem ele é, mas é o centurião romano no final do livro que afirma “de fato esse era o filho de Deus”(15.39). Nem mesmo as mulheres que foram ao sepulcro vazio após sua morte, compreendem, fugindo com expressões de “temor, assombro e medo”(16.8).

Saber quem verdadeiramente era Jesus somente se tornou possível após a ressurreição e ele visitar seus discípulos e explicar todas as coisas(16.12–14), somente apos isso, eles passam a compreender.

Marcos é feito de intensidade e paixão até o fim, é um enigma não somente para os discípulos na época, mas para nós leitores dois mil anos depois. A mesma questão ainda paira sobre as cabeças, será que esse homem crucificado é o messias prometido? Isso nos põe em contato com o mistério que é Jesus de Nazaré, não um mero carpinteiro ou rabi sem formação oficial, mas o Filho de Deus encarnado, um mistério que ainda assombra a muitos ainda hoje.

BIBLIOGRAFIA:

[1] http://www.nickcave.it/extra.php?IdExtra=78

[2] Perkins, P. The Synoptic Gospels and the Acts of the Apostles: Telling the Christian Story”. In Barton, John. pp. 241–58

[3] LADD,G. Teologia do Novo Testamento, p.295

[4] Marcos In: Comentário Bíblico Moody(ebook)

[5] LADD.p.300

[6]BLOOM,H. Jesus e Javé, Os nomes divinos.p.79

[7] MARCOS In:Comentário bíblico pentecostal. p.176

[8] Messianic Secret In: The Oxford Dictionary of the Christian Church, p.1083

[9] Comentário bíblico pentecostal. p.176

[10] Ipud.p.165

[11] BLOOM.p.85

Parte 1:

Sobre outros livros da bíblia:

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2