O medo fantasma: sobre cancelamentos, expurgos e exclusão virtual

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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5 min readSep 4, 2021
“The Death of Stalin(2017) de Armando Iannucci”

O filme “A Morte de Stalin”(2017), demonstra como eram os últimos momento de vida de Stalin no comando do regime soviético e como esse governo gerava pânico e terror até na cúpula mais alta do poder.

Nikita Khrushchev, primeiro-secretário do Partido Comunista, Lavrenti Beria, Ministro do Interior e promotor de expurgos contra qualquer um que fosse uma ameaça ao regime e Vyacheslav Molotov, Ministro do exterior, estão em um jantar com Stalin. No meio do jantar, Khrushchev conta algumas piadas e cita um antigo membro do partido morto. O pobre Molotov, pergunta pelo paradeiro dele. O clima é de terror, mas Beria faz algumas brincadeiras e consegue reverter o mal-estar.

No final da festa, quando todos, exceto Stalin, já estão do lado de fora, Molotov diz que: “não há como saber quem está vivo ou morto” e Khrushchev dá um valiosíssimo conselho: “Fala para sua mulher tudo que você acha que disse hoje, assim você saberá, pela manhã, o que disse hoje”, isso é a Lei de Khrushchev. De fato, Khrushchev realmente fazia com que sua esposa recordasse das piadas ditas nas festas com Stalin, para saber qual ele gostou mais e quais ele não poderia repetir, de maneira nenhuma. Essa era a maneira que encontrou para se manter vivo.

Se, no regime soviético havia um Stalin para controlar e disseminar terror por sua presença, hoje não há mais uma figura central que dissemine tanto pavor, mas esse poder continua a ser exercido pelas mídias sociais, com todo tipo de déspotas, que causam expurgos, não como Beria promovia, mas com “exposições”, “cancelamentos” e desmonetização de conteúdos. Tudo isso feito por trás de uma tela, sem um pingo de suor.

Os influenciadores e influenciados digitais, são mestre e senhor nessa batalha virtual, pois tem que fazer questão de sinalizar, a todo instante, a opinião certa a ser defendida. Se for vacinas são boas, sem nenhum tipo de questionamento de sua eficácia, isso é postado; se for que o controle da mídia é para seu bem, eles replicam; se for o uso de “linguagem neutra”, com o acréscimo de x,y ou z, mesmo que dificulte a leitura de forma clara; nada disso importa e ocorre para qualquer ideia. O importante é mostrar de que lado está. E no momento em que o ideal muda, eles automaticamente mudam, do dia para a noite, de posição, não importando se forem contraditórias. O que vale é seguir qualquer opinião que seja boa para autopromoção e sobrevivência nesse sistema, pois ninguém quer ficar de fora do “lado certo da história”.

Essa é a moeda de troca nesse admirável novo mundo, que vai desde ganhar (ou continuar) num emprego ou publicar um livro, que somente tem o propósito de reafirmar o ideário atual, sem questionamentos ou críticas. Tudo é belo e bom nesse novo mundo.

Pisar fora da linha pode trazer ainda prejuízos financeiros, como quebra de contratos publicitários ou perda de papéis em séries ou filmes. Esse é o preço a ser pago para não ser excluído da bolha: conformar-se a todo pensamento vigente, por mais absurdo que possa ser.

A revista The Economist, lançou uma matéria que fala acerca da “esquerda iliberal”, como ela denomina, sendo seu principal problema o pensamento totalitário que difere, e muito, do pensamento liberal clássico. Ela diz que:

o liberalismo clássico acredita que o progresso humano é gerado pelo debate e pela reforma. A melhor maneira de navegar por mudanças perturbadoras em um mundo dividido é por meio de um compromisso universal com a dignidade individual, mercados abertos e governo limitado. No entanto, uma China ressurgente zomba do liberalismo por ser egoísta, decadente e instável. Em casa, populistas de direita e esquerda se enfurecem com o liberalismo por seu suposto elitismo e privilégio.(…) [o liberalismo clássico] está passando por um teste severo, assim como aconteceu há um século, quando os cânceres do bolchevismo e do fascismo começaram a devorar a Europa liberal por dentro. É hora de os liberais entenderem contra o que estão lutando e contra-atacar.

Ao invés da primazia do debate e da troca de ideias, o pensamento atual prima pela falta de diálogo por todos os lados. Direitista, esquerdista e qualquer outro espectro político, está cercado por suas câmaras de eco, sem olhar o que está fora. Obviamente que as redes sociais têm papel importantíssimo nisso, mas parece que um espírito do tempo, que assola a humanidade, com um acelerar de suas relações, indo até o ponto de ruptura, sendo impossível voltar atrás.

Os ataques ao pensamento liberal clássico, vêm da direita populista (Trump, Bolsonaro e similares) que atacam a ciência, a mídia, as eleições e qualquer coisa que pareça um empecilho para seu projeto de poder. Isso fica bem claro nos discursos. Mas a esquerda tem no seu discurso uma hubris diferente, pois possui uma agenda refinada, vinda das universidades, como a linguagem neutra(como se a linguagem fosse neutra de alguma forma???), defesa acrítica de minorias, com uma visão de justiça cega, e outras coisas, como nos relata a matéria:

Conforme os jovens formados conseguiram empregos na mídia de luxo e na política, negócios e educação, eles trouxeram com eles o horror de se sentir “inseguros” e uma agenda obcecada com uma visão estreita de obter justiça para grupos de identidade oprimidos. Eles também trouxeram táticas para reforçar a pureza ideológica, sem plataforma para seus inimigos e cancelando aliados que transgrediram — com ecos do estado confessional que dominou a Europa antes do liberalismo clássico criar raízes no final do século 18.

Eles, com o poder das mídias e das posições de influência, podem exercer esse totalitarismo de ideias, como se fossem estados católicos na idade média ou revolucionários na França da Bastilha derrubada. Não mais cortando cabeças ou jogando em fogueiras, mas excluindo da internet, retirando empregos ou expurgando as ideias contrárias em, verdadeiros, autos de fé, como os que eram feitos pelos Portugueses e Espanhóis na inquisição, onde, os pobres hereges e apóstatas, deveriam passar pelo ritual de penitência pública pelas ruas, no qual seus pecados eram lidos e no final, sem saber se seriam absolvidos ou não, aguardavam, fora da cidade, sua sentença ser lida. Liberdade ou fogueira? Ninguém sabia até a proclamação, no final da cerimônia. Assim era antigamente, assim ocorre hoje, com menos sangue, mas o mesmo espírito continua vivo.

O que fazer diante disso? Fazer uma crítica ao próprio grupo, com o risco de ser excluído, parece um preço alto a se pagar, mas é a única solução. Se tornar um pária, expurgado pelo regime totalitário de ideias, como num episódio de Black Mirror, sem volta para casa, sem emprego e sem o antigo status, pode não ser tão mal assim, como nos disse o Senhor Jesus, certa vez:

…que adianta ao homem ganhar o mundo todo e perder a sua alma?” (Mc. 8.36).

Molotov, no final da festa, se despede alegremente de todos. Quando ele se afasta, Beria diz: “Adeus pra sempre!”, Todos olham espantados e ele fala para o resto de seus camaradas: “Ele está na lista”.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2