O problema com as redes — Como elas nos afetam e como estamos sendo de-formados

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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11 min readOct 27, 2020

O homem que copiava (2003) é um filme de Jorge Furtado, que conta a história de André(Lazaro Ramos), um rapaz que trabalha em uma papelaria, como operador de fotocopiadora. Sua vida se passa de casa para o trabalho, e é pela luz da máquina de “xerox” que ele constrói seu mundo. André obtém conhecimento através das páginas das cópias dos livros que ficam presas à máquina. É a partir de trechos de textos e pedaços de imagens que ele se informa. São esses fragmentos de informação que moldam sua realidade e sua visão de mundo.

O Homem que Copiava (2003), André (Lazaro Ramos)

O que acho interessante nesse filme é que André se forma e in-forma por recortes, trechos e pedaços de informação. O insight é que esse conhecimento fracionado que faz com que André misture todo tipo de informação desconexa, como por exemplo, André mora na rua Presidente Roosevelt, que ele descobre ser o presidente dos EUA e que ficou famoso pela doutrina Roosevelt, na qual, ele não tem ideia do que seja, pois: “não deu tempo de ler o que era”. Tudo passa como um continuum de informação fracionada. Da mesma maneira, é o tipo de conhecimento trazido pelas mídias sociais, um conhecimento incompleto que informa desinformando por causa da facilidade e velocidade de compartilhamento.

O conhecimento se torna uma cópia, de outra cópia, que se perde em uma reprodução distorcida. Nesse processo, a informação se transforma em des-informação e ninguém faz ideia de qual era a realidade ou a reprodução original. O importante é a construção da narrativa que faça algum sentido, e não a qualidade da informação, ou seja, o importante são as imagens recortadas e coladas que montam um sentido subjetivo dos pedaços de informação reproduzidos e copiados ad aeternum.

Marshall McLuhan, proclamava nos anos 60 que: “The medium is the message” ou o meio é a mensagem. Sua constatação já revelava que o meio pelo qual a mensagem é transmitida se tornaria mais importante que a mensagem em si. McLuhan explica a frase:

E assim o título tem a intenção de chamar a atenção para o fato de que um meio não é algo neutro — ele faz algo nas pessoas. Ele gruda nelas. Se esfrega, massageia e sacode-as, quiropraticamente, por assim dizer, e a aspereza geral que qualquer nova sociedade obtém de um meio(medium), especialmente um novo meio, é o que se pretende nesse título [1]

O meio pelo qual a informação viaja não é neutro, ele gruda e transforma a mensagem e, por conseguinte, o mensageiro também é transformado. McLuhan dá o exemplo da lâmpada que não possui nenhuma informação como um jornal ou uma televisão tem programas, mas ela permitiu que novos espaços fossem criados.[2]Aquilo que era negado pela escuridão da noite foi conquistado pela claridade da lâmpada e uma nova revolução humana pode ser feita.

Se uma mera lâmpada, que não possui uma mensagem em si, tem o impacto de transformar o ser humano, permitindo que ele trabalhe, se divirta, estude e faça tantas outras coisas que não poderiam ser feitas antes por causa da escuridão da noite. O que um objeto como um smartphone capacitado para se comunicar com a velocidade das pontas dos dedos com o mundo inteiro pode fazer com a humanidade?

Byung Chul-Han, refletindo sobre as conclusões de McLuhan, diz que a mídia digital nos desprogramou sem que saibamos qual será o resultado disso, ela “transforma decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso pensamento, nossa vida em conjunto”, somos embriagados pelas mídias e não sabemos qual será o resultado disso, ele completa: ”Essa cegueira e estupidez simultânea a ela constituem a crise atual”. [3]

Han estava no “longínquo” ano de 2013, quando esses problemas começavam a nos atormentar. Facebook, Twitter, Instagram ainda não tinham o poder que hoje, sete anos depois, podemos ver os efeitos dessa bebedeira digital. Tínhamos alguma noção da ressaca trazida por essa tecnologia, entretanto no documentário Dilema das redes(2020), vemos os sérios problemas desse mundo digital.

Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de “usuários”: drogas ilegais e software.

O documentário é um grande mea-culpa daqueles que projetaram e perpetuaram esse Frankenstein que agora não conseguem controlar. O filme aborda o crescimento das mídias sociais na vida contemporânea, sendo impossível escapar disso e por conseguinte, os danos que ela causaram. Harris chega a afirmar que estamos na Matrix(1999), sem saber disso. No filme, as máquinas exploravam os humanos como pilhas para alimentá-las, 21 anos depois, os humanos estão alimentando os logaritmos com informações para ganhos financeiros através do capitalismo de vigilância e da obtenção de dados vendidos para empresas com o intuito de vender todo tipo de produtos. A atenção ao design dos programas que se alimentam das melhores universidades do Vale do Silício como Stanford e Berkeley, munidas de psicologia social e comportamental, têm todas essa armas apontadas para maximizar o uso e fabricar artificialmente o vício. E é claro que isso influencia a política, a saúde mental, principalmente de adolescentes, com altas taxas de suicídio depressão, e na disseminação de fakenews e todo tipo de teorias da conspiração, desde antivacinas à terraplanistas.

Harris é um dos que participaram do documentário que trabalhavam nas empresas de tecnologia. Harris era designer ético da Google e é o co-fundador do Center for Humane Tecnhology (Centro de tecnologia humanizada), que esteve no centro de toda a mudança que as gigantes da tecnologia promoveram na sociedade e parece estar arrependido, querendo alertar os males que ele mesmo ajudou a produzir. Alguns outros entrevistados são: Tim Kendall, ex-diretor de monetização do Facebook e ex-presidente do Pinterest; Justin Rosenstein, ex-engenheiro do Google e do Facebook, e criador do botão “like”; Jaron Lanier, pioneiro da realidade virtual e muitos outros que ainda estão na indústria ou que participaram ativamente nesse processo.

Essa caixa de pandora está fora de controle, mesmo que alguns ainda achem que as mídias sociais são meras ferramentas, um dos entrevistados diz que “Mudamos de um ambiente de mídia social baseado em ferramentas para um ambiente de manipulação.”. Ou seja, as mídias não são neutras como já dizia McLuhan, além disso, essas novas mídias são manipuláveis por essas grandes empresas de tecnologia para obter lucro. No final, nos tornamos ratos de laboratório moldados ao bel-prazer das tecno-corporações.

VICIADOS EM LIKES

As big-techs criaram ferramentas para nos estimular e dar pequenas recompensas: o estilo de atualização de página como um caça-níqueis, o botão like e o desejo natural de ser aceito, são algumas das formas de liberar dopamina em pequenas doses para nos manter viciados, como explica a Dra. Anna Lembke, diretora da Stanford Addction Medicine Dual Diagnosis Clinic. “Temos uma necessidade biológica básica de nos conectar com outras pessoas. Isso afeta diretamente a liberação de dopamina como recompensa. Não há dúvidas de que um sistema como o das mídias sociais, que otimiza essa conexão entre pessoas, tem um potencial viciante.”[4]

SOMOS RATOS DE LABORATÓRIO

Skinner na década de 1930. descobriu que os ratos respondem melhor a estímulos no qual a recompensa não pode ser prevista, de forma aleatória e de baixo risco . Da mesma maneira funciona os humanos; quando percebemos que seremos recompensados de forma aleatória, e se a verificação da recompensa tiver um custo baixo, acabamos fisgados e realizamos sempre os mesmo comportamento. Por isso que checamos o telefone ao sentirmos o menor sentimento de tédio, puramente por hábito. Os programadores sabem disso e trabalham cada vez mais para que possamos continuar fazendo exatamente isso.

Chamath Palihapitiya, ex-vice-presidente de crescimento do usuário do Facebook, admite em uma palestra para alunos de Stanford: “Sinto uma enorme culpa” ele prossegue: “Os ciclos de feedback de curto prazo movidos pela dopamina que criamos estão destruindo como a sociedade funciona”.[5]

DEPRESSÃO, AUTOMUTILAÇÃO, ANSIEDADE E SUICÍDIO

Essas contínuas doses “homeopáticas” de dopamina, além de nos viciar faz com que queiramos cada vez mais ser estimulados, sendo assim, ansiedade e depressão são os preços a serem pagos por tantos estímulos e exposição. Jonathan Haidt, psicólogo social no NYU Stern School of Business, observou que entre 2011 e 2013, o uso de mídia social e tecnologia tornou-se cada vez maior entre adolescentes e no mesmo período houve um crescimento gigantesco de depressão, ansiedade, automutilação e suícido nesse público nos EUA. O Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA registrou um aumento dramático nas taxas de suicídio entre jovens de 10 a 14 anos, quase triplicando de 2007 a 2017. Haidt chegou a conclusão de que o aumento do uso das redes sociais são agravantes para o aumento desses doenças psicológicas. E isso atinge principalmente as meninas, o número de automutilaçoes aumentou 62% entre as mais velhas e 189% entre as pré-adolescentes[6]. No documentário, Haidt afirma que “uma geração inteira é mais ansiosa, mais frágil [e] mais deprimida. ” O CDC dos EUA descobriu que o número de crianças de 6 a 17 anos com diagnóstico de ansiedade ou depressão aumentou de 5,4% em 2003 para 8% em 2007 e para 8,4% em 2011–2012. O criador do botão like, chega a afirmar que a ideia era “espalhar positividade no mundo”. O ditado “o inferno está cheio de boas intenções“ nunca foi tão real, as intenções eram boas, porém, todos os problemas que isso acarretou não estavam planejados.[7]

FAKE NEWS

Algo que não poderia ficar de fora é o número crescente das chamadas fakenews. De acordo com o documentário, as redes sociais são as causas da polarização da sociedade e da multiplicação das fakenews. O documentário informa que as notícias falsas se espalham seis vezes mais rápido do que as notícias reais, de modo que os algoritmos das mídias sociais se aproveitam do apetite natural por fofocas, escândalos e conspirações.

A Pew Research, descobriu em 2018, que “cerca de dois terços dos adultos norte-americanos (68%) recebem notícias em sites de mídia social. Um em cada cinco recebe notícias lá com frequência. “A combinação de Facebook, Google e Twitter controla as informações recebidas por um grande número de americanos: “O Facebook ainda é de longe o site que os americanos mais usam para obter notícias. Cerca de quatro em cada dez americanos (43%) recebem notícias no Facebook. O próximo site de notícias mais comumente usado é o YouTube [de propriedade do Google], com 21% recebendo notícias lá, seguido pelo Twitter com 12%.[8]

Foi realizada uma pesquisa similar no Brasil pela Câmara dos Deputados e pelo Senado e revelou que é o Whatsapp a maior fonte de informação dos entrevistados: 79% disseram receber notícias sempre pela rede social. O ambiente possui mais de 136 milhões de usuários no Brasil, sendo a plataforma mais popular juntamente com o Facebook.[9]

Esse é o tamanho da influência que as big-techs têm sobre a humanidade. Whatsapp, Instagram e Facebook são controlados pelo mesmo dono, Google com outra grande fatia do mercado. Isso é uma influência sobre bilhões de pessoas, com poder, através do uso dos logaritmos, para controlar e manipular os usuários, sem nenhum tipo de controle.

Entretanto, algumas vezes isso não ficou impune. Isso aconteceu em 2019, com o Facebook, que teve que arcar com uma multa de 5 bilhões de dólares ao Tesouro americano pelo manuseio indevido de dados dos usuários. E em janeiro de 2020, eles entraram em acordo em uma ação coletiva de 650 milhões de doláres[10]. Esse controle põe em risco os rumos das eleições em vários países, como no caso da Cambridge Analytica, que utilizou dados do facebook. O mais assustador é que esses dados não foram obtidos ilegalmente, eles estavam livres para serem comprados no próprio facebook. Os logaritmos não tem controle ético, eles são programados para obter lucro, e a desinformação e as conspirações, que têm maior capacidade de viralização e visualização, são mais lucrativas. Deste modo, o sistema favorece as notícias falsas e as opiniões mais radicais, pois são mais vistas e sendo assim, rendem mais dinheiro.

O documentário se inicia com uma citação de Sófocles: “Nada vasto entra na vida dos mortais sem uma maldição”. Não se pode pensar que uma tecnologia tão vasta como a internet, com tantas vantagens para o ser humano, não traria consigo o outro lado. As tecnologias nunca foram neutras, desde a Grécia Antiga até hoje, entretanto, as novas mídias digitais colocam a questão do futuro, que os antigos gregos, nem de outras épocas, pensavam a respeito. O próprio documentário não mostra soluções para isso e mostra os programadores como se não soubesse do monstro que estavam ajudando a criar.

O filósofo, Hans Jonas, tenta pensar em soluções para o dilema ético que as novas tecnologias trouxeram para a humanidade, ele diz que: “A técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita da grandeza, com tais novos objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais enquadrá-las“ Jonas continua, “Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade”.[11]

Jonas propõe um novo categórico para abarcar a questão tecnológica, abandonando o kantiano, que dizia “Aja como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.”, para: “Aja de modo que os efeitos de tuas ações não sejam destrutivos para a possibilidade de uma vida humana sobre a terra”. Jonas coloca o futuro e as futuras gerações como preocupação ética, não somente o hoje, mas o amanhã deve ser lembrado. Jonas é categórico em dizer que sem a força da religião seria impossível fazer isso, por é só um axioma, não tem justificativa. [12]

A tristeza de Hans Jonas, se deve ao fato de não nos preocuparmos com o que pode acontecer com algo aparentemente tão benéfico no presente. Devemos aproveitar os conselhos de Jonas e saber lidar com as tecnologias, com a consciência de que não são neutras e que sua utilização irá, inevitavelmente nos in-formar, de-formar e trans-formar. Esse processo não tem volta, pois elas são programadas para cada vez mais “espelhar” as preferências pessoais. A tecnologia digital é narcisista e vai nos “ensimesmando”. Como explica Han:“O digital(…) desconstrói o real e totaliza o imaginário. O smartphone funciona como um espelho digital(…) Ele abre um espaço narcísico, uma esfera do imaginário na qual eu me tranco. Por meio do smartphone o outro não fala”[13]

Que possamos nos desvincular das redes, sabendo que nesse “admirável mundo novo”, o que era benéfico, pode tornar-se uma teia sufocante e nos afastar cada vez mais da realidade. O próprio Han diz que cultivava um jardim, para que pudesse “perceber a alteridade da terra: a terra tinha peso, fazia tudo com as mãos; o digital não pesa, não tem cheiro, não opõe resistência, você passa um dedo e pronto… É a abolição da realidade.”[14]. Que não privemo-nos da realidade e não façamos do outro inferno sem temer sua alteridade misteriosa.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2