Palavras têm poder, nós cristãos cremos nisso.

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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5 min readAug 20, 2021

Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras — Clarisse Lispector | A Hora da estrela

Palavras têm poder. Essa frase é um pouco batida, mas ela demonstra que temos que ter cuidado com o que falamos, porquê falamos e para quem falamos. Assim foi com Macabéa, a protagonista de Clarisse Lispector em A Hora da Estrela. Macabéa é uma nordestina “de ovários murchos”, bastante humilde, pobre, passava fome e não tinha muito esperança na vida, seu único sonho era ser uma estrela de cinema, como Marilyn Monroe.

Macabéa, depois de muitos sofrimentos, resolve ir a uma cartomante. Ali, ela recebe, pela primeira vez, palavras que lhe dão um futuro. Ali, ela foi engravidada de futuro, ela havia sido transformada e transformada por palavras.

Platão, (o divino Platão) escreve no Crátilo, uma teoria acerca da origem das palavras. Em grosso modo, dois argumentos surgem: As palavras seriam convencionais, ou seja, as palavras surgiriam devido ao costume e à convenção, ou seja, elas não expressariam a essência de seu significado, então poderiam ser trocadas por algo não relacionado pelos indivíduos ou comunidades que as usam. Ou seriam naturais, realizado por um “artífice das palavras” que daria cada palavra seu som e significado conveniente. A torre de babel entraria nessa segunda categoria, no qual Deus dá a linguagem ao homem e depois, devido a astucia humana, ele traz a confusão de línguas e por isso temos tantos idiomas diferentes.

A segunda teoria ficou meio fora de uso, pois ninguém mais acredita que as palavras foram escolhidas pelos deuses e teriam um significado único. A linguagem seria então um conjunto de convenções modificadas pelo uso e desuso cultural.

Diferentemente da visão geral, nós cristãos acreditamos no poder das palavras. Isso não é mera autoajuda, nós somos obrigados a isso, pois nosso Deus usou palavras para, através delas, criar o cosmos. “Haja luz, houve luz”, foi através dessa ordem que tudo que existe passou a existir. O autor dos Hebreus explica que: “Pela fé compreendemos que o Universo foi criado por intermédio da Palavra de Deus e que aquilo que pode ser visto foi produzido a partir daquilo que não se vê”(Hb.11.3). Além de cremos na palavra, cremos que tudo que existe foi feito por intermédio dela, então devemos levá-la muito a sério. Ele também diz que Deus falou “muitas vezes e de muitas maneiras”, o nosso Deus se comunicou em língua humana, Ele fez questão de se comunicar para que os homens pudessem entendê-lo. Ele falou, antigamente, “aos pais, aos profetas,” mas “nos últimos dias, “falou-nos pelo Filho”(Hb.1.1). O filho de Deus, é um Deus-palavra, e é João, o Apóstolo, que nos apresenta essa nova faceta desse Deus.

João fala que Ele é logos (palavra, conhecimento), assim, usou um conceito grego para mostrar o YAWEH dos judeus e, depois, o Jesus para todo o mundo. Ele diz ainda que, o verbo ou palavra, estava com Deus e era Deus(Jo.1.1). Até aqui Ele é mais uma divindade que fala com seus servos, entretanto, além de ser a palavra, ele se encarna. “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”(Jo.1.14), assim, nosso Deus é um Deus-palavra. Essa afirmação deve ser o maior escândalo que possa existir. Pois o Logos divino, que era imaterial, distante, imóvel, vira carne humana. Isso era inconcebível para o grego, pois a matéria era considerado algo mal, impuro, deste modo, não era possível um Deus se fazer humano sem ser mal também. Essa afirmativa também continua inconcebível para nós modernos e pós-modernos, pois não cremos mais que palavras têm poder e muito menos que um Deus possa existir.

O logos, que ninguém jamais vira, pois aquele que visse, seria morto no mesmo instante, que era palavra ouvida seguida de raios e trovões, “vira” Jesus, o nazareno, um substantivo encarnado, mas que também é verbo, pois é um nome que se transforma em ação para invadir a história, comunicando a todo homem a palavra de Deus. Com a encarnação da palavra, João complementa, “vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”(Jo.1.14). No momento que a palavra se fez carne, Jesus se torna a casa perfeita para que possamos ver a gloria de Deus, que estava negada a nós. Jesus é o tabernáculo, que nos permitiu adentrar na gloria de Deus sem que fossemos mortos. Ele criou um novo caminho de salvação, ou de comunicação, para que todo ser humano pudesse receber a verdade de Deus. Sendo assim, foi através da palavra encarnada, que podemos ouvir a boa-notícia em nosso idioma. No final, Ele fala todas as línguas a todos os homens em todas as épocas. Por isso as palavras são tão importantes para nós protestantes.

Macabéa, foi impactada pelas palavras de uma cartomante, mas isso era apenas ilusão, aquelas palavras não mudaram, de fato, sua vida. Ela foi engravidada de um futuro que acabou na sarjeta, quando a pobre mulher foi atropelada por uma Mercedes. O narrador tem a noção que ela só poderia ser mudada por palavras, pois “desde Moisés se sabe que a palavra é divina”. A palavra é divina, dada pelo Deus-palavra para transformar todo aquele que a ouve e crê nela. Diferentemente das falsas esperanças e futuro dado pela cartomante, Cristo que dar vida e novas esperanças, com palavras vivas, cheia de boas notícias.

Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo — crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras — desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria.

Ah, Macabéia, se esse fosse o relato de sua conversão e o evangelho tivesse invadido sua vida, ao invés das falsas promessas da cartomante, essa seria a sua hora de brilhar, não como uma estrela de cinema, mas como que iluminada pela luz que alumia a todos os homens (Jo.1.9).

BIBLIOGRAFIA:

LISPECTOR, Clarisse. “A hora da estrela”

Platão. ‘Crátilo”

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2