Pecado, culpa e coach — Como o discurso terapêutico influenciou a sociedade

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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11 min readSep 18, 2019

Será que ainda é possível falar de pecado hoje em dia?

Adam and Eve by Lucas Cranach the Elder (1526)

Esse texto é uma tentativa de comunicar para uma nova geração, sobre o que é pecado, a culpa que ele produz e sobre suas consequências.

A gênese do pecado se dá no Éden, com Adão e Eva, que desobedeceram a ordem divina para não comer do fruto da árvore do bem e do mal. Esse ato foi a razão do afastamento da humanidade de Deus. A rebelião do homem contra Deus é uma das afirmações centrais de toda a Bíblia. A causa do afastamento foi o pecado, que é a raiz de todos os problemas da humanidade. “A Bíblia, no entanto, não dá uma definição formal para o pecado. Descreve somente como uma atitude que personifica a rebelião contra Deus. A rebelião estava na raiz do problema para Adão e Eva (Gênesis 3: 1) e tem estado na raiz da situação da humanidade desde então.”[1]

Acreditar nessa narrativa nos dias atuais tem sido o desafio, em um mundo secularizado, a questão do pecado parece ter sido deixada para trás. As pessoas parecem ter abandonado as questões sobre o inferno, o céu e a religião. O antigo homem tinha na religião seu porto seguro, era dela que retirava seus valores tradicionais e tinha um forte senso de perspectiva com relação ao estado, família, trabalho e identidade. Entretanto, na transição da modernidade, anterior ao advento do capitalismo, para uma segunda fase capitalista, surge um novo homem que substitui a sabedoria vinda da religião pelo saber psicológico. Nesse momento de transição, o discurso terapêutico substitui o discurso religioso. “Vivemos a substituição da moral pela psicologia e a ansiedade tomou lugar da culpabilidade. Já não se pode interpretar a não ser em termos de conflitos psíquicos”: é a vitória do terapêutico sobre o religioso. ”[2]. Os psicólogos foram elevados a sacerdotes do novo tempo, neles busca-se como viver nessa sociedade totalmente secularizada, eles são os portadores do “santo graal” da vida contemporânea. Em outras palavras, os templos religiosos foram trocados pelos consultórios clínicos.

Charles Taylor descreve como esse novo paradigma surgiu, foi a partir do movimento romântico no final do século XVIII, do seu individualismo que pregava “não devemos criticar os valores uns dos outros” [3], que também influenciou mudanças nas questões sexuais e na religião. Como a vida e a prática religiosa, não estavam mas sendo ditadas pela igreja, agora, a escolha pessoal determina como será o vínculo com o sagrado. Esse movimento é uma continuação do movimento romântico que foi da razão para uma linguagem “mais suave”. Taylor chama essa nova fase de era da autenticidade:

Refiro-me à compreensão da vida que emerge com o expressivismo romântico do final do século XVIII, que cada um de nós tem sua própria maneira de realizar sua humanidade e que é importante encontrar e viver a sua, ao contrário renunciar à conformidade com um modelo imposto a nós de fora, pela sociedade ou pela geração anterior, ou autoridade religiosa ou política.[4]

Um novo homem surgiu nessa segunda fase do capitalismo. Eva Illouz o chama de homo sentimentalis, ou Homem afetivo. Para a autora, o ser humano agora põe a vida afetiva e suas emoções como fator principal na sociedade e não mais a religião ou a moral. Essa virada sentimental, segundo Illouz, se dá com Freud e com o discurso psicológico aplicado às várias áreas da esfera social. Esse discurso produziu uma cultura afetiva que se enraizou no trabalho, na família, na cultura popular, nas relações amorosas e nas diferenças entre homens e mulheres nos Estados Unidos no decorrer do século XX. Para Illouz, os afetos motivam as ações, não são as ações,mas são a “energia interna” que impele à agir[5], por isso, é tão importante analisar esse movimento, para que possamos buscar uma solução para o pecado na contemporaneidade.

Milan Kundera, explica a emergência do homem sentimental e observa que esse conceito não pode ser confundido com o homem que sente, ou que possui sentimentos, mas é aquele que tem orgulho dos seus sentimentos, e faz questão de reafirmá-los, confundindo com seus valores:

A civilização européia é supostamente fundamentada na razão. Mas também poderíamos dizer que a Europa é uma civilização do sentimento; ela deu origem ao tipo humano que eu gostaria de chamar o homem sentimental: homo sentimentalis […] É preciso definir o homem sentimental não como uma pessoa que experimenta sentimentos […] mas como uma pessoa que os valorizou. Desde que o sentimento seja considerado valor, todo mundo quer experimentá-lo; e como todos nós temos orgulho de nossos valores, é grande a tentação de exibir nossos sentimentos. […] Do momento que queremos experimentá-lo […] o sentimento não é mais sentimento, mas imitação de sentimento, sua exibição. Aquilo que geralmente chamamos histeria. É por isso que o homo sentimentalis (em outras palavras, aquele que instituiu o sentimento como valor) é na realidade idêntico ao homo hystericus. [6]

Por causa do surgimento do homo sentimentalis, que valoriza sentimentos em detrimento da moral e da razão, um novo conceito de pecado deve ser posto. Pecado nessa nova era, não tem mais o sentido de rebelião cósmica contra Deus, mas é simplesmente um sentimento ruim. A lógica é a seguinte: O pecado gera culpa e culpa é um sentimento ruim, logo, deve ser evitado a todo custo. Em outras palavras: não é o pecado que deve ser abandonado, mas os sentimentos que o pecado produz.

SERÁ QUE PRECISAMOS DE UM NOVO CONCEITO DE PECADO?

Em uma entrevista para Luis Felipe Pondé, o pastor Ed René Kivitz sugere um novo conceito para o pecado. Ele afirma que o pecado não pode mais ser visto como transgressão da lei, não sendo mais legalista, sendo assim, não pode ser visto como quebra de mandamentos, esse conceito deve ser abandonado, pois, em uma sociedade individualista, esse discurso está “datado historicamente”. Kivitz propõe que pecado deve ser visto “como vivência autodestrutiva”, tanto do individuo quanto do coletivo. Kivitz parece se apropriar de um discurso sentimental, quando diz que pecado deve ser conceituado como “experiência existencial agônica”, ou seja, a agonia de não poder ser tudo aquilo que deveria e que poderia ser.[7]

O conceito de Kivitz se afasta do sentimento de culpa, não sendo bem visto atualmente, para se apropriar da visão de performance, mais apropriado ao ser do seculo XXI. Essa visão mostra como o homem sentimental não deseja viver pela ordem anterior e por isso, abraça sua própria crença moral, como aponta Guilherme de Carvalho:

esse movimento faz parte do grande paradigma do “Homem Psicológico” (Philip Rieff) ou “Homo Sentimentalis” (Eva Illouz) ou “Configuração moral expressivo-sentimental” (Charles Taylor). Esse paradigma envolve a elevação da felicidade emocional e da auto-expressão afetiva como valores morais superiores, constituindo-se em uma eudemonística, e tem seu suporte político no liberalismo terapêutico ou identitário. Essa eudemonística ou doutrina de felicidade não se constitui em estrutura psicológica cientificamente demonstrada ou fato natural per se, nem é uma verdade logicamente necessária. É um sistema doutrinal, um projeto compartilhado, e uma crença moral.[8]

O homem sentimental constrói novos valores com a intenção de maximizar sua felicidade, essa é sua única moral, uma vida hedonista, que busca prazer e conforto pessoal.

Esse homem tem a necessidade de afirmar seus sentimentos, por isso, deve ser fiel a si mesmo em oposição a qualquer outro eu ou regras morais anteriores que tentam modificá-lo ou mudar seu comportamento. o homo sentimentalis precisa ter seu comportamento validado, disso, advêm os problemas da autoafirmação identitária, pois, a objetividade moral foi abandonada pela subjetividade sentimental. O que causou impacto no ser humano e ao seu redor. Pois, a partir de agora, deve-se levar em conta as emoções do indivíduo, não mais constatações racionais ou morais, sem nenhum tipo de restrições sociais.

Como já dito, o discurso terapéutico, usado pelos psicoterapeutas, foi a narrativa usada pelo novo homem que surgiu, pois necessitava de um modo de expressar e aliviar suas culpas e dores pós-modernas, mas será que retirar a culpa é a solução?

John Stott, mostra como o sentimento de culpa nem sempre é ruim, ele nos faz enxergar que temos uma responsabilidade com nós mesmos, com Deus e com o próximo:

Nós deveríamos ser gratos pela reação generalizada contra a insistência de Freud de que os sentimentos de culpa são sintomas patológicos de doença mental. Alguns deles com certeza o são, especialmente em certos tipos de enfermidade depressiva; mas nem toda culpa é falsa. Pelo contrário, cresce cada vez mais o número de psicólogos e psicoterapeutas contemporâneos que, mesmo não professando a fé cristã, nos dizem que precisamos levar a sério as nossas responsabilidades. O falecido Dr. Hobart Mowrer, da Universidade de Illinois, por exemplo, entendia a vida humana em termos contratuais e via o “pecado” como uma quebra de contrato que deve receber uma reparação. A Bíblia certamente sempre enfatizou, tanto as nossas obrigações como seres humanos, como a nossa falha ao deixarmos de cumpri-las. Nós, em particular, temos buscado afirmação colocando-nos contra o amor e a autoridade de Deus e contra o bem-estar do nosso próximo. Usando uma linguagem cristã bem direta, nós, além de pecadores, somos também pecadores culpados, e a nossa consciência nos diz isso. Conforme uma das piadas de Mark Twain, “o homem é o único animal que fica envergonhado — ou que precisa fazê-lo”[9]

Outra pergunta surge: será que ao aliviar esse sentimento de culpa, ao invés de aliviar sintomas, na realidade, se criou uma patologia de caráter?

Essa é a questão que a psicóloga Mary Lamia, professora no Wright Institute em Berkeley, Califórnia, tenta responder. Na sua visão, ao retirar o sentimento de culpa, estamos descartando um importante alerta social em detrimento das emoções:

A culpa nos alerta para não nos envolvermos em atividades que possam causar brechas no vínculo social, no contrato conjugal ou no relacionamento comercial. Mas agora que estamos nos libertando da consciência que exige que coloquemos os relacionamentos em primeiro lugar e nossos impulsos em segundo, a dinâmica mudou.[10]

Para a psicóloga, a culpa não é algo ruim, “é uma emoção social e autoconsciente que evoluiu para proteger os seres humanos. Ajuda as pessoas a se entenderem, causando desconforto se você intencionalmente ou não intencionalmente, ferir outra pessoa física ou emocionalmente.”[11] Sem o sentimento de culpa, perdemos a empatia para com o próximo, sem esse sentimento tudo é permitido e se perde a noção de que os atos tem consequências. Entretanto, apesar dessa tentativa, isso não altera o produto do pecado, a culpa e por fim, a morte.

O discurso anti-culpa, retirou o último “lacre de segurança” que evitava a autodestruição, a culpa pelos erros, a dor de ter feito algo errado e seu remorso, agora tudo é possível psicologicamente, mas a culpa permanece mesmo assim se manifestando de outras formas.

Russell Shedd, aborda de uma perspectiva teológica o mesmo problema da eliminação da culpa em nossa sociedade, ao invés de tentar lidar com os problemas ou resolver as causas da culpa, o que se tenta fazer é atacar os produtos finais. Esse mal-estar humano é causado,pelo, o que a bíblia chama, de pecado!:

Pecado quer dizer uma ofensa contra Deus, quebra de sua lei, de ser um subversivo e ter rejeitado seu reinado. Pecado significa entronizar nosso eu, depois de destronizar Deus. A conseqüência do pecado inevitavelmente é a culpa, aquele sentimento ruim de ter errado, de ter fugido de nossa responsabilidade. É um pressentimento de castigo merecido, de uma dívida que terá que ser paga.[13]

O mal-estar na sociedade atual, a culpa que não pode ser perdoada é pecado, e com relação a isso, como demonstra Tounier, “a cul­pa que a Bíblia denuncia, e para a qual só ela dá a única resposta possível”[14], só ela é capaz de retirar esse mal-estar da civilização, “Numa civilização ocidental, que se afasta de Deus, recorremos aos psicólogos e psiquiatras para explicar o mal-estar e buscar um tratamento que nos trará alívio.”[15] Só que os mesmo não são capazes de aliviar tal mal.

A culpa é o alerta de que algo foi corrompido, é um alarme que nos fala que fizemos algo errado. Sem esse alerta estamos completamente perdidos em nossas ações.

Por isso a culpa é importante para a vida em sociedade e para os individuos, sendo assim, não pode ser calada, ela revela que algo foi corrompido, por isso, é leviano acreditar que pecado é apenas uma coisa criada pela religião para afugentar o inferno, ou impor controle sobre os pobres crentes. Como no ato de Adão e Eva, eles não foram somente desobedientes a Deus, mas também, condenaram todo universo, pois, foram contra aquele que os havia criado. Quando destruíram a ordem imposta por seu criador, fizeram com que toda a criação se desencontrasse, ficasse sem direção. Por isso, a morte é a sentença final aquele que vai de encontro a ordem universal posta pelo criador, o que se sintetiza nos dez mandamentos. Essa é a gravidade do pecado, por isso a importância de falar sobre pecado nas igrejas, e mostrar que somos pecadores, mesmo que as pessoas não acreditem mais nisso. Como explica Tiago Cavaco:

O conceito de que precisamos de Jesus como Deus para nos salvar do pecado será sempre irrelevante para uma cultura que, antes ainda de ter deixado de acreditar em Jesus, deixou de acreditar no pecado. Vale a pena reparar no detalhe: o primeiro ceticismo dos nossos tempos não é necessariamente o ceticismo em relação ao fato de Cristo ser salvador; é o ceticismo em relação ao fato de sermos pecadores.[16]

O homo sentimentalis, não se considera pecador, sua visão de si mesmo é otimista, ele é um ser que sofre e é oprimido, logo, o sentimento de culpa, foi transformado em uma expressão da identidade terapêutica e é na experiência do sofrimento e na compreensão dos sentimentos que ele se reafirma. “quem precisa de Deus se ele já está na nossa barriga? Não é hoje possível pregar a mesma fé de Lutero sem antes culpar os homens que a ouvem”[17]. Por isso, esse discurso terapêutico não pode ser utilizado para reafirmar um discurso vitimista que valoriza sentimentos em detrimento das consequências das ações. Esse caminho sentimental fica evidente com o movimento dos coaches, com os livros de autoajuda e com os pregadores atuais. Shedd deixa um conselho valioso para os pastores “Acho irônico que muitos pastores que poderiam orientar suas igrejas sobre pecado e culpa, estão cada vez mais procurando soluções psicológicas.”[18]

BIBLIOGRAFIA:

[1] SIN. In: Holman Bible Dictionary. https://www.studylight.org/dictionaries/hbd/s/sin.html

[2] GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da Norma:para alem da racionalidade histórica: Porto Alegre, EDIPUCRS, 2009. p.149

[3]TAYLOR, Charles.A Secular Age: Cambridge, Belknap Press Of Harvard University, 2007. p.484

[4] Ibid., p.475

[5]ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.(referência eletrônica)

[6] KUNDERA, Milan. A Imortalidade. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1990. p. 190–191

[7] Democracia na tela. É possível um diálogo religioso que não seja marketing? | Ed René Kivitz.(30min, 38seg.) https://www.youtube.com/watch?v=zydO9UgvG9o

[8] CARVALHO, Gulherme de. Doze teses sobre o pluralismo social. https://guilhermedecarvalho.com.br/2019/08/15/doze-teses-sobre-o-pluralismo-social/

[9]STOTT, John. Ouça o espírito, ouça o mundo.São Paulo : ABU Editora, 2005. p.22

[10] LAMIA, Mary. Whatever Happened to Guilt?. https://www.psychologytoday.com/us/blog/intense-emotions-and-strong-feelings/201101/whatever-happened-guilt

[11] Ibid.

[12]SHEDD, Russell. Psicologia, pecado e culpa. http://www.comunhao.org.br/devocionais/pastor-russell-shedd.html?layout=blog

[13] Ibid.

[14] TOURNIER, Paul. Culpa e graça: uma análise do sentimento de culpa e o ensino do evangelho. São Paulo: ABU, 1985. P.60

[15]SHEDD. Op. cit.

[16] CAVACO, Tiago. Cuidado com o alemão. São Paulo: Vida nova, 2017. p.100–101

[17] Ibid. p.101

[18] SHEDD. Op. cit.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2