Salvos somente pela fé? Uma provocação teológica

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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7 min readNov 2, 2021
Dawn: Luther at Erfurt (1861). Sir Joseph Noel Paton (Scottish, 1821–1901)

Sola fide, somente fé, é um dos slogans da reforma instaurada pelo Monge agostiniano Martinho Lutero. Ele fez com que milhões de fieis, desde 1517, tivessem uma relação direta com Deus, assumindo o sacerdócio universal de todos os crentes, a importância da consciência pessoal e uma aproximação das escrituras, lidas e interpretadas, através do poder do Espirito Santo. Apesar de tantas benesses, devemos fazer algumas críticas ao que se tornou uma salvação que ficou baseada em uma fé abstrata, que não produz boas obras. É sobre isso que gastaremos algumas linhas para falar a respeito.

Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei. Romanos 3:28

So halten wir nun dafür, dass der Mensch gerecht werde ohne des Gesetzes Werke, allein durch den Glauben. (Então, agora acreditamos que o homem se torna justo sem as obras da lei, somente pela fé) Tradução de Lutero 1577

Uma palavrinha pode ter tanta importância para um texto que pode mudar a concepção da fé de muitas pessoas séculos depois. Allein, que significa “somente” em alemão foi acrescentada por Lutero na sua tradução de Romanos 3.28. Lutero explica que queria dar uma ênfase maior, por sinal o grego o autorizava a isso, na relação direta entre a fé em Cristo do individuo e o abandono das obras da lei, ou das indulgencias, pelo qual ele estava criticando a Igreja Católica. Ele explica “Eu sei muito bem que em Romanos 3 a palavra solum(somente) não está no texto grego ou latim — os papistas não tinham que me ensinar. É fato que a sola não está lá.[…] Eu queria falar em alemão, não em latim ou grego, uma vez que era em alemão que eu tinha definido a ponto de falar na tradução”. Em outro texto, ele completa de forma menos amistosa: “Se incomoda o papista a palavra (“somente”), diga-lhe logo, o Dr. Martinho Lutero vai tê-la assim mesmo.: papista e burro são uma e a mesma coisa. Quem não quiser minha tradução, que se dê a ele um ‘vá-se embora’”(Lutero,1530)

Lutero não era nenhum homem manso, ele era irritado, mas também bem-humorado. Sua raiva era contra seus críticos católicos. Eles não aceitavam as credenciais de Lutero como doutor em teologia, pois ele conquistou seu grau com rapidez e suas habilidades acadêmicas eram acima da média. Isso o enfurecia bastante.

O jeito tempestuoso de Lutero, fez com que se duvidasse de sua tradução, entretanto, ele não foi o único a acrescentar o “somente”, Ambrósio, Orígenes, Agostinho e muitos outros fizeram isso. Essa era uma maneira de demarcar claramente que não haveria nenhum tipo de mérito humano, ou seja, nenhuma obra, que pudesse regenerar e trazer salvação para qualquer individuo. Lutero defende sua posição na Confissão de Augsburg(1530) e depois a reitera na Carta da Concordância(1580):

Ensina-se, ademais, que boas obras devem e têm de ser feitas, não para que nelas se confie a fim de merecer graça, mas por amor de Deus e em seu louvor. Sempre é a fé somente que apreende a graça e o perdão dos pecados. E visto que pela fé é dado o Espírito Santo, o coração também se torna apto para praticar boas obras. Porque antes, enquanto está sem o Espírito Santo, é demasiadamente fraco. Além disso, está no poder do diabo, que impele a pobre natureza humana a muitos pecados, como vemos nos filósofos que se lançaram à empresa de viver vida honesta e irrepreensível, e contudo, não conseguiram realizá-lo, porém caíram em muitos pecados graves e manifestos. É o que acontece ao homem quando está sem a fé verdadeira e sem o Espírito Santo e se governa apenas pela própria força humana (Confissão de Augsburg, Artigo 20: De Boas Obras).

“Primeiro, não há controvérsia entre nossos teólogos a respeito dos seguintes pontos neste artigo, a saber: que é a vontade, ordem e comando de Deus que os crentes devem andar em boas obras; e que verdadeiramente boas obras não são aquelas que cada um imagina por si mesmo com uma boa intenção, ou que são feitas de acordo com as tradições dos homens, mas aquelas que o próprio Deus prescreveu e ordenou em Sua Palavra; também, que obras, verdadeiramente boas, são feitas, não por nossas próprias forças naturais, mas desta forma: quando a pessoa pela fé é reconciliada com Deus e renovada pelo Espírito Santo, ou, como diz Paulo, é criada de novo em Cristo Jesus para as boas obras, Ef. 02.10 (Livro da Concôrdia, Artigo 4: De Boas Obras).

Portanto, a fé não deve andar sozinha, é ela que justifica, mas não está completa se não for acompanhada por boas obras. Mas parece que esse fato, que era tão claro para Lutero e seus companheiros de reforma, foi se perdendo conforme os anos foram se passando. A ênfase dada à sola fide, parece ter obscurecido a necessidade de produção de boas obras. Outro teólogo alemão, parece enxergar qual foi a falha de Lutero.

Para Dietrich Bonhoeffer (1906–1945), o grande erro de Lutero foi ter ensinado a salvação somente pela fé, mas sem a necessidade do discipulado. Deste modo, as pessoas começaram a não se preocupar com uma vida de compaixão e amor ao próximo. O fator humano era mais valioso do que uma boa doutrina, que ninguém vivia. A distorção do ensino de Lutero, fez com que muitos contemporâneos de Bonhoeffer caíssem, no que ele chamou de graça barata, em detrimento de uma graça preciosa. O produto final disso, foi a adesão da igreja alemã aos ideais do nazismo, e ainda a utilização dos ideais de Lutero como sustentador disso.

A graça opera sozinha, afirmava Lutero, e assim repetiam literalmente seus seguidores, com apenas uma diferença: muito rapidamente, excluíram, deixaram de pensar e de afirmar aquilo que para Lutero sempre constituiu a base de seu pensamento: exatamente o discipulado. Sim, porque ele já não precisava dizer, pois sempre tinha falado como alguém a quem a graça conduzira ao mais difícil discipulado de Jesus. (2004, 14–15)

Lutero foi um homem alcançado pela graça preciosa, entretanto, não afirmou a necessidade desse discipulado, fazendo com que a graça, que era preciosa, se tornasse barata. Portanto, Lutero havia errado por tomar a afirmação da graça e somente a fé como suficientes, e esqueceu da importância do discipulado e não contou a história que estava por trás das tentativas de alcança-la. Assim, para Bonhoeffer, é necessário que haja tentativas de salvação por mérito próprio, para que se possa perceber a verdadeira graça redentora de Cristo. A mulher adúltera, que busca salvação por vários amores, o publicano, que achava poder salvar-se através do dinheiro, Nicodemos por sua posição ou mesmo Lutero que era atormentado por seus pecados e tentou de várias formas se salvar através de penitências. Todos eles desejavam salvar-se, mas foram frustrados por essa experiência. Nessa frustração, eles conseguem enxergar a verdadeira salvação, a graça redentora de Cristo Jesus. Nele, de graça, encontram o que buscavam por mérito próprio. Sua frustação permite que recebam, sem barreiras, a graça preciosa. Conclui Bonhoeffer que:

Não se pode contestar que a doutrina de seus seguidores, portanto, se originava dos ensinamentos de Lutero, mas foi o ensino dessa doutrina que levou ao fim e à destruição a Reforma como revelação da graça preciosa de Deus na terra. A justificação do pecador no mundo tornou-se justificação do pecado e do mundo. Em consequência disso, da graça preciosa surgiu a graça barata, sem discipulado.(2005, p.15)

O mundo virou cristão, através da graça sem discipulado. Fé se tornou algo aparte das obras, uma mera crença intelectual, justificada por essa graça barata. Até a frase de Lutero, “peca com coragem”, pode ser entendida como licença para pecar ou como consolo ao pecador arrependido. Isso depende se for lida por alguém alcançado, verdadeiramente, pelo discipulado de Cristo, ou um mero convencido, escondido em uma igreja. A fé, portanto, para Bonhoeffer é:

“fundamentar a vida num fundamento fora de mim mesmo, num fundamento eterno e santo, em Cristo. Fé significa ser cativo do olhar de Jesus Cristo, não enxergar nada mais do que ele, ser arrancado do cativeiro do próprio eu, estar liberto por Jesus Cristo.(…)Somente a fé é certeza; fora dela, tudo está sujeito a dúvida”. (2015, p.80)

A fé é absoluta para salvar, mas a fé não está sozinha, não é algo desencarnado e abstrato, mas a firme convicção daquele que foi justificado por Cristo. Jesus se torna o alvo e porto-seguro daquele que crê. O justo vive por fé (Rm.1.17), isso deve ser lido como “aquele que foi justificado por Deus, somente estará vivo, por sua fidelidade a Deus” ou “O justificado por Deus, somente estará vivo, pela fidelidade de Deus”. Ambas leituras são válidas, pois aquele que é justo, só pode sê-lo através da fidelidade inabalável de Deus aos seres humanos e somente é justo aquele que põe sua confiança irrestrita em Deus. O mais importante é a fidelidade divina, pois a salvação vem somente Dele e Ele é totalmente fiel. Ou seja, na promessa de Deus eu me sustento e confio.

Assim, Fé e obras devem andar juntas. Ser salvo é estar apto a realizar boas obras, predeterminadas por Cristo(Ef.2.10), de outro modo, a fé se torna morta. A fé privada e interna, se torna evidente quando fazemos boas obras. É o que Tiago afirma, em Tg.2.18: “mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras”, isso fica claro, a partir do momento que vemos a incapacidade de desassociar uma vida de fé, com uma vida de boas obras. A entrada na vida de fé é de pronto uma entrada nas obras deixadas por Cristo Jesus. Ainda Tiago reafirma a característica intrínseca de fé e obras: “a fé cooperou com as suas obras, e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada”. (Tg.2:22). Em outras palavras, a fé foi amadurecida pelas obras e as obras ajudam na afirmação da fé.

Concluo que uma fé verdadeira não pode ser, de maneira nenhuma, desassociada de uma vida que frutifica em boas obras. E fica claro que obras não salvam, mas demonstram que alguém é salvo.

Que o Senhor nos ajude e abençoe.

Soli Deo Gloria.

BIBLIOGRAFIA:

BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado, 2004

BONHOEFFER, Dietrich. Ética, 2015

LUTERO, Martinho. “Traduzindo em Carta Aberta” -1530 Em:http://www.bible-researcher.com/luther01.html

Fabio Jefferson: http://protestantismo.com.br/colunistas/fabio_jefferson/lutero_e_a_palavra_sola.htm

CONFISSÃO DE AUGSBURGO. Em: https://www.luteranos.com.br/public/download.php?nome=confissu-o-de-augsburgo&file=201110/d7b7aa6ab42a6997d50e12499d52e7b2.pdf

LIVRO DA CONCORDIA. Em: https://www.lutheranlibrary.org/pdf/250-jacobs-book-of-concord.pdf

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Thiago Holanda Dantas
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Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2