Saul, o rei belo e louco

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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6 min readMar 19, 2023
David and Saul, oil on canvas by Ernst Josephson, 1878; in the Nationalmuseum, Stockholm.

O que pode levar alguém à loucura? Será uma predisposição genética, a criação ou algum evento específico? Na história do Rei Saul, a Bíblia nos conta que a loucura chega através do próprio Deus, por meio de um espírito maligno enviado para atormentá-lo. Esse “espírito” pode ser entendido como uma tristeza que o acometia, algo semelhante à hipocondria. Para os judeus, “ar ruim”, que em hebraico é “ruach”, significa tanto ar quanto espírito, por isso foi traduzido como “espírito maligno” . Esse “ar ruim” poderia ser uma tristeza profunda advinda do abandono divino ou propriamente enviado por Deus. Podemos entender isso pelo remédio proposto, o som da harpa de Davi. Ao tocá-la, Saul se lembrava de algo que não possuía mais — A presença de Deus, que já estava com Davi. Também, Saul poderia já ter esse estado anímico, e, portanto, o espírito maligno, foi na realidade, Deus retirando Seu Espírito que aliviava sua tristeza devido à sua desobediência. Saul desobedeceu diretamente a Deus em duas ocasiões (1 Sm.13:1–14; 15:1–35). Portanto, Deus removeu Seu Espírito de Saul e permitiu que um espírito maligno o atormentasse, sendo assim, a causa de sua melancolia era uma manifestação direta de Deus.

Podemos, também, nos questionar se a beleza de Saul teve um papel importante em sua queda. Talvez, por ser belo, muitas de suas características ruins foram ignoradas em prol de sua aparência. Sua impulsividade, sua necessidade de ser aceito pelo povo e sua atitude intempestiva podem ter sido exacerbadas pela sua beleza. No entanto, não é possível apontar uma única causa para sua queda. Porém, podemos afirmar que a combinação de seu temperamento e beleza contribuíram para sua loucura, o que nos faz refletir sobre a importância que damos à aparência e como isso pode influenciar nossos julgamentos.

ASCENSÃO DE SAUL

O povo de Israel ansiava por um rei, seguindo o exemplo de outros povos. No entanto, a escolha não foi baseada no caráter ou habilidade de governar, mas sim na beleza e porte físico. Segundo o texto bíblico, Saul “era mais alto do que qualquer outro homem em Israel; desde os ombros para cima era mais alto do que qualquer outro” (1 Sm 9:2). E assim foi Saul escolhido como o primeiro rei de Israel. O profeta Samuel, que governava e exercia o sacerdócio, tentou alertar o povo sobre as consequências dessa escolha, mas não foi suficiente para dissuadi-los, pois queriam um líder político. Antes de Saul, as esferas políticas e religiosas estavam unidas, com Samuel sendo o último Juiz de Israel que unia essas duas forças. A ascensão de Saul representou a secularização do poder, estabelecendo a divisão entre o religioso e o político.

No entanto, esse plano logo foi por água abaixo. Mesmo antes de ser coroado como rei, Saul foi ao encontro dos profetas e começou a profetizar, o que causou estranheza. Aqueles que viram a cena disseram: “Estará Saul entre os profetas?” (1 Sm. 10.11). Saul passou a acreditar ter algo de profeta e sua decadência se iniciou sem ao menos ter começado a reinar.

Na área militar, o reinado de Saul começou muito bem. Ele liderou com sucesso os israelitas contra os filisteus em algumas batalhas. Além de belo, ele era um líder carismático que inspirava lealdade em seus súditos. Entretanto, logo suas falhas começaram a aparecer. No segundo ano de seu reinado, Saul lutava mais uma vez contra os filisteus. Como era costume, era necessário realizar um sacrifício a Deus para que a batalha tivesse sucesso. Samuel deveria fazer isso, mas disse que demoraria sete dias para chegar. Depois de uma semana sem nenhuma palavra de Samuel, os soldados ficaram cada vez mais ansiosos e começaram a desertar. Vendo esse cenário, Saul ofereceu os sacrifícios. Samuel chegou no exato momento em que Saul estava terminando de sacrificar. A desculpa de Saul foi que ele realizou o sacrifício porque foi levado pelas circunstâncias (1 Sm. 13.12). Samuel repreendeu Saul e declarou que Deus já havia escolhido um substituto e que seu reinado não teria descendência.

Alguns anos após a vitória de Saul contra os filisteus, Samuel instrui Saul a fazer guerra contra os Amalequitas e destruí-los totalmente, incluindo mulheres, crianças e o gado (1Sm.15.1–3). Obviamente Saul não obedece totalmente a ordem divina. Ele mata todos os homens, mulheres, crianças e o gado de má qualidade, mas deixa vivo o rei Agague e o gado bom. Nesse momento Samuel descobre o que Saul havia feito. Saul, como era sua forma costumeira, tenta justificar sua desobediência alegando que foi o povo que o levou a fazer aquilo e que o gado era para realizar sacrifícios a Deus. Esse foi o ponto final. Deus o havia rejeitado como rei. Samuel declara que: “A obediência é melhor do que o sacrifício, e a submissão é melhor do que a gordura de carneiros (…) Assim como você rejeitou a palavra do Senhor, ele o rejeitou como rei” (1 Sm.15.22–23). Saul admite o erro, mas justifica usando os soldados e o povo. Saul não havia aprendido a lição. Em um último ato de desespero, quando Samuel se vira para ir embora, Saul agarra suas vestes, e arranca um pedaço. Samuel profetiza que da mesma maneira que o tecido havia se rasgado seu reino também seria partido e arrancado de Saul. Samuel termina o serviço, adora a Deus e mata a Agague. Os dois nunca mais se viram depois desses acontecimentos.

A loucura se apossa de Saul

Após isso, Saul entra em uma espiral de paranoia e loucura. Sem Deus ao seu lado, ele começa a tomar decisões equivocadas. Sua loucura o consome. Mesmo antes de sua derrocada, ele ordenou que seu filho Jônatas fosse executado por quebrar uma ordem sem sentido, sendo salvo pelo povo. Davi, seu sucessor, torna-se alvo e Saul tenta matá-lo várias vezes. Mesmo os sacerdotes que ajudaram Davi a escapar de sua fúria foram executados.

Ruina

A queda final de Saul ocorreu em uma batalha contra os filisteus no monte Gilboa. Antes da batalha, ele tenta consultar o Senhor, mas Ele não o responde. Como já era sua prática, se volta completamente à ordem de consultar mortos, se disfarça, e vai visitar uma médium em En-dor. A médium, sem saber que falava com Saul, o lembra que o próprio rei havia decretado a necromancia como ofensa capital, porém Saul promete que não fará mal a ela. A mulher conjura um espírito que parece ser o profeta Samuel, e ele repete a mesma mensagem anterior. Deus o rejeitou totalmente, o reino foi dado a Davi e que no dia seguinte ele e seus filhos perderiam a batalha e a vida.

E assim aconteceu. O exército estava em menor número e seus três filhos foram mortos em batalha. Saul foi gravemente ferido e para não ser capturado, preferiu tirar a própria vida, lançando-se sobre sua espada. Os filisteus encontraram o corpo de Saul e seus filhos na manhã seguinte, cortaram a cabeça de Saul e penduraram seus corpos na muralha de Bete-Seã. Quando os homens de Jabes-Gileade, que haviam sido salvos por Saul no início de seu reinado, souberam disso, foram buscar os corpos e os enterraram em Jabes, sua cidade natal.

CONCLUSÃO

A história de Saul nos alerta sobre como o poder pode corromper uma pessoa (ou o revela). Apesar de ter começado bem, ele se perdeu em sua ambição e desobediência a Deus. Saul lutou para conciliar a obediência a Deus, a obsessão pelo poder e a popularidade. No entanto, sua loucura foi uma consequência de sua desobediência. Desde o momento em que se viu capaz de exercer a função de profeta e sacerdote, sua ruína foi selada. Infelizmente, sua queda final foi trágica e inevitável, já que havia se afastado completamente de Deus.

Não devemos esquecer que devemos permanecer fiéis aos princípios divinos, mesmo quando a tentação de agir pelas circunstâncias for grande. Devemos lembrar que “obedecer é melhor que sacrificar”, como declarou Samuel. Se seguirmos essa lição, poderemos evitar um final trágico como o de Saul. Devemos lembrar que o poder e a popularidade não são o mais importante, nossa principal preocupação deve ser agradar a Deus em todas nossas ações e decisões. Outra lição fundamental é que as aparências podem ser enganosas e muitas vezes, acabamos fazendo julgamentos precipitados baseados somente naquilo que vemos. A beleza física é uma das características que mais influenciam esses julgamentos. Infelizmente, na história de Saul, vimos que essa tendência não é nova. Sua beleza física não foi um bom indicador de seu caráter, por isso devemos tomar muito cuidado para não cairmos em suas armadilhas e observar qualidades mais importantes e menos aparentes.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2