Será que é proibido ser feliz?

Um clamor por uma teologia da Alegria.

Thiago Holanda Dantas
vanitas
10 min readMay 25, 2019

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Todos estão em busca da felicidade

Vivemos na época mais feliz de todas! As redes sociais estão cheia de belos textos sobre a vida, belos sorrisos, amizades eternas. Nessas redes todos estão felizes e vivendo o melhor tempo de suas vidas. Por outro lado, na vida real, estamos vivendo um surto de depressão, ansiedade e suicídio. E isso não é um privilégio dos jovens, percorrendo todas as faixas etárias, classes sociais e religiões. Algo está ocorrendo de estranho, ao mesmo tempo que todos dizem que estão em busca da felicidade, temos um surto de infelicidade.Onde começou esse descompasso?

A busca pela felicidade não é algo novo. Os gregos antigos levavam a felicidade a serio. Para Aristóteles a felicidade seria o bem mais nobre e desejado pelo ser humano, sendo desejada por si só e por mais nenhuma outra razão,

…esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (…); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.[1].

Aristóteles observa que as pessoas confundem honras, prazeres e bens com a felicidade, mas diferentemente do senso comum, a felicidade é o bem mais perfeito de todos, pois tudo que realizamos tem por único objetivo encontra-lá. E ela só pode ser encontrada através da pratica das virtudes (arethé), utilizando a razão e visando sempre a prática do bem. A felicidade envolve atividade, visando excelência, ou as virtudes, de acordo com a razão.

Outro grego que se debruçou sobre o assunto foi Epicuro,que ficou notoriamente conhecido por seu jardim das delicias ou jardim de Epicuro, onde junto com seus seguidores, passou a viver a doutrina da busca pelo prazer máximo na vida,ou hedonismo. Epicuro enxerga o hedonismo como prazer e único bem e que a dor é o único mal. Por isso, busca a ataraxia, ou a fuga dos sofrimentos na vida. Epicuro identifica a vida feliz com a vida de prazer, livre da dor e da angústia, essa tranquilidade de espirito seria capaz de levar as pessoas à felicidade.[2]

O cristianismo também se propôs a falar sobre o assunto. Agostinho, o bispo de Hipona, fala sobre a felicidade nos seus escritos. O autor escreveu tanto em “Sobre a Vida Feliz”, quanto em “Confissões”, sobre a felicidade plena. Assim como Aristóteles, Agostinho acredita que todo ser humano está em busca da felicidade, entretanto, a verdadeira felicidade está no amor a Deus. Para Agostinho, o problema do ser humano é que seu amor está voltado para as coisas erradas, e é no encontro e no amor a Deus, que esse amor fica perfeitamente em ordem e é possível encontrar a felicidade. O amor aos outros, a criação e as outras coisas tem novo significado quando mudado por esse amor.

O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com tua palavra, e te amei. O céu, a terra e tudo quanto neles existe, de todas as partes me dizem que te ame; nem cessam de repeti-lo a todos os homens, para que não tenham desculpas. Terás compaixão mais profunda de quem já te compadeceste; e usarás de misericórdia com quem já foste misericordioso. De outro modo, o céu e a terra cantariam teus louvores a surdos. Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de unguentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha alma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus! [3]

A felicidade plena para Santo Agostinho é um encontro pessoal com Deus. Esse encontro é cheio de amor pelo Divino. Agostinho é um amante de Deus,ele clama junto com o salmista: “ Ó Eterno, Tu és o meu Deus e a Ti eu busco dia e noite; a minha alma tem sede de Ti! Todo o meu ser anela pelo refrigério da tua presença numa terra árida, exausta e sem água”(Sl.63.1). Seu amor por Deus deve ser falado pois é nEle que se pode encontrar toda a fonte de alegria. Ser feliz é somente possível nesse encontro e no amor verdadeiro para com Deus, ele prossegue: “Esta é a vida feliz: alegra-se em ti, de ti, por ti. Essa é a vida feliz e não há outra. Aqueles que acham que existe outra, perseguem outra coisa, perseguem outra coisa e não encontram a verdadeira alegria.”[4]

Só há uma vida feliz: Uma vida de amor pleno por Deus e ele como principio e fim de toda felicidade. Agostinho pinta de cores fortes seu amor por Deus, Ele é seu amado e por isso clama: “Tarde demais eu te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova!Tarde demais eu te amei!(…) Tu espalhaste doces perfumes, eu os inalei e suspirei por Ti. Degustei, e senti fome e sede. Tu tocaste, e eu senti desejo ardente de tua paz.”[5]

Agostinho faz uma declaração de amor a Deus, que hoje talvez corasse os mais religiosos, mas o Bispo faz questão de ter seu amor explicitado tão vividamente, pois em Deus, Agostinho encontrou a fonte verdadeira de amor e felicidade, e não somente pequenos prazeres que prometiam alegria, mas ao invés, somente traziam tristeza.

Muitas outras escolas se debruçaram sobre o tema, na antiguidade, no medievo, mas a partir da modernidade, parece que o assunto da felicidade, que era tão caro à filosofia, foi deixado de lado e se tornou um assunto de menor importância; e na religião cristã, onde a felicidade era um bem que deveria ser encontrado somente em Deus, também teve o mesmo destino. Porém, quando aconteceu esse rompimento?

A quebra — “O momento Kant”

O teólogo John Piper, atribui a Immanuel Kant esse rompimento tanto na filosofia, quanto na religião. Kant, foi um filósofo alemão do século XIX, que foi o expoente mais poderoso da noção de que o valor moral de um ato diminui à medida que pretendemos extrair dele qualquer benefício. Para Kant, o ato moral somente seria bom e válido, se fosse desinteressado, ou seja, devemos fazer o bem, porque é bom e nada além disso. Qualquer tentativa de retirar algum tipo de prazer ou alegria dessa ação, corromperia o ato. Ele afirma:

Ora, se uma ação realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação e com ela todo o objeto da vontade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do que a lei objetivamente, e, subjetivamente, o puro respeito por essa lei prática, e por conseguinte a máxima que manda obedecer essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações.[6]

Kant destaca, que a ação não é absolutamente boa quando não age unicamente pela razão e pela imposição do dever. Quando o indivíduo se deixa levar por seus desejos e inclinações essa ação é inválida moralmente.

Na Crítica da Razão Pura, Kant define a felicidade como a “satisfação de todas as nossas inclinações”[7], ou seja, “para a ideia de felicidade é necessário um todo absoluto, um máximo de bem-estar, no meu estado presente e em todo o futuro”[8]. Em Kant vemos Deus como mero fiador da felicidade, não como sua fonte, e mesmo assim, essa felicidade é somente possível no paraíso, seu conceito foi tão elevado, que pode-se entender que atingi-la é algo impossível para qualquer ser humano, pois para tal, assim como Deus, “seria preciso a onisciência”.[9]

Se podemos colocar assim, “o momento Kant”, influenciou também a religião que antes era geradora de felicidade, pelo encontro e pela obediência a Deus, para uma religião mergulhada em deveres que não podiam ter nenhum tipo de “recompensa” ou alegria nas suas ações.

Piper afirma que foi essa noção de religião desinteressada que foi tomada como verdadeira religião. Essa visão que influenciou os cristãos e acabou com a busca pela felicidade em Deus. Citando C.S.Lewis: “Se hoje a noção de que é errado desejar a nossa felicidade e esperar ansiosamente gozá-la esconde-se na maioria das mentes, afirmo que ela surgiu em Kant ou nos estoicos, mas não na fé cristã”[10]

A partir de Kant, foi estabelecido uma cisão entre as boas inclinações que davam sentido e cor aos atos religiosos, trazendo alegria e satisfação, e a felicidade atrelada a devoção divina e as boas ações, essa felicidade foi projetada unicamente além-mundo e a felicidade distanciada da vida comum, restando apenas atos sem nenhum tipo de prazer.

A separação foi feita e a culpa tomou seu lugar. Não sendo mais possível encontrar a felicidade tanto na terra quanto em Deus, e a felicidade que poderia ser almejada no encontro com Deus, mesmo aqui, de forma incompleta, parece ter sido esquecida e infelizmente perdida. Por tal alto grau necessário para alcançar uma alegria plena, essa busca acabou mundanizada(no pior sentido da palavra), ou seja, por não conseguir uma felicidade mesmo que pequena nesse mundo, seja no encontro com o Divino ou na trivialidade de ações boas, a carga de uma felicidade que somente poderia ser encontrada nesse encontro pleno, foi projetada para um paraíso momentâneo de sensações e prazeres vagos no aqui e agora.

Indo de encontro à moralidade Kantiana e sua felicidade tão longínqua, Piper diz que se deve “anunciar a moralidade bíblica descaradamente hedonista.” e além disso, “A noção kantiana diz que não há problema em obter alegria como resultado não intencional de sua ação. Mas todas essas pessoas (inclusive eu) estão mirando a alegria”[11]. Piper usa como exemplo Jonathan Edwards, que foi contemporâneo de Kant e morreu quando o filósofo alemão tinha 34 anos, o teólogo americano, expressou isso em uma de suas primeiras resoluções: “Decidi, empenhar-me para obter para mim mesmo tanta felicidade no outro mundo quanto eu puder, com todo o poder, vigor, e veemência, sim violência, eu sou capaz de, ou posso me esforçar, de qualquer maneira que possa ser pensada ”[12]

O cristianismo, e aqui, principalmente o protestante, não é asceta, de forma alguma, mas sim um entusiasta do prazer, entretanto, não de meros prazeres momentâneos, mas do verdadeiro prazer, como explica C.S Lewis:

Alegria (no sentido que dou à palavra) tem de fato uma característica, e só uma, em comum com os outros dois termos; o fato de que qualquer pessoa que já a vivenciou vai querer novamente senti-la. (…) Duvido que qualquer um que a tenha experimentado vá trocá-la por todos os prazeres do mundo, se as duas opções estiverem ao seu alcance. Mas a Alegria nunca está ao nosso alcance, do contrário, frequentemente do prazer.[13]

Todos queremos ser alegres e verdadeiramente felizes, mas infelizmente, trocamos a verdadeira alegria pelo prazer momentâneo. O que Piper, Lewis, Edward, Agostinho e muitos outros afirmam é que é possível ser feliz, ter prazer e felicidade aqui nessa terra e é possível busca-la sem culpa pois como dito por Piper: “Isso significa que Deus recebe o louvor, e nós, a alegria. Deus nos criou de tal forma que Ele é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos nEle”[14]

Em sua famosa tese do hedonismo cristão, Piper nos impulsiona a buscar uma verdadeira felicidade em Deus sem culpas. Ele nos dá de graça sua felicidade e vida, enquanto o buscamos e nos alegramos nELe. Essa promessa perpassa toda a bíblia. O que resta a nós e nos juntarmos e esses grandes homens que foram felizes, apesar dos problemas e dificuldades e conseguiram encontrar em Deus sua alegria plena!

Por isso é necessário retornar a uma teologia da alegria para enfrentar esse tempo. A plena satisfação em Deus deve ser o antídoto para uma geração que se perdeu em mero formalismo religioso e se esqueceu do alegre serviço cristão. Retornar a alegria e satisfação dos antigos crentes que cantavam os hinos esquecidos e empoeirados dos velhos hinários que afirmavam:

“Riquezas não preciso ter, mas sim celeste bem;

Nem falsa paz ou vão prazer, porquanto o crente tem

Eterno gozo no Senhor, por desfrutar o Seu amor;

Com Cristo estou contente, Ele me satisfaz!

Com esse amor do Salvador, agora estou contente…”

BIBLIOGRAFIA:

[1]ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[2]EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu): São Paulo, UNESP, 2002

[3] AGOSTINHO. Confissões.São Paulo: Mundo Cristão,2015,p.355

[4]Ipud.p.368

[5]Ipud.p.370

[6] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004.p.31

[7]________________ . Crítica da razão pura. 5.ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.Ebook .(B 834)

[8]_______________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004.p.55

[9] Ipud

[10] PIPER,John. Teologia da alegria: a plenitude da satisfação em Deus. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo : Shedd, 2001,p.49

[11]___________. Em: https://www.desiringgod.org/articles/christian-hedonism

[12] EDWARDS, Jonathan. The Works of Jonathan Edwards, Vol.1.London: Banner of Truth Trust.1974.p 21

[13] LEWIS.C.S. Surpreendido pela alegria , traduzido por Eduardo Pereira e Ferreira. São Paulo: Mundo Cristão, I998. p.25

[14] PIPER,John.Para sua alegria.São Paulo:Editora Fiel,2008.p.34

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Thiago Holanda Dantas
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Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2