Sobre a cultura da vitimização e o culto à vítima .

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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8 min readMar 10, 2020

No domingo (01/03/20), O programa Fantástico transmitiu uma matéria mostrando o preconceito e as dificuldades de transexuais e travestis na prisão. Uma das entrevistadas pelo dr. Drauzio Varella foi Suzy. Seu relato comovente que culminou com a fala de Suzy sobre estar a quase 8 anos sem receber visitas, deixou o dr. Drauzio comovido a ponto de lhe dar um abraço afetuoso. A filmagem dentro da oficina na prisão e as lágrimas completaram a cena. Sua história deixou milhões de telespectadores comovidos, foram feitas vaquinhas, cartas foram escritas de solidariedade com a transsexual que fora abandonada simplesmente por ser uma transsexual. Páginas de sites e muitas mensagens sobre o grande gesto do doutor foram replicadas.

Passado uma semana, descobriram o real motivo da trans Suzy ter sido presa: violência sexual e assassinato a sangue frio de menor. De acordo com o processo, o motivo da prisão de Suzy, ou melhor, Rafael Tadeu de Oliveira dos Santos, seu nome de batismo, foi pelo fato de estuprar e estrangular Fábio dos Santos Lemos, de 9 anos, em maio de 2010. Suzy/Rafael, foi condenado a mais de 30 anos de prisão, além de outros casos de pedofilia[1]. Essa omissão ou lapso da rede de tv e do doutor são agora cobrados. Infelizmente, a narrativa do conto de fadas da transsexual oprimida, solitária, longe de seu parceiro e presa por um pequeno delito, que não merecia nem ser mencionado, caíra por terra.

Foto: Reprodução / TV Globo)

Esse episódio revela o problema de querer colocar criminosos como mocinho(a)s, ao invés de colocá-los como seres humanos reais que cometeram crimes. É muito melhor contar suas historias como vítimas da sociedade, do que o que de fato são — criminosos. Além do mais,a trans no fantástico mostrou a virtude sendo comercializada, uma mercadoria valiosíssima na bolsa de valores da vitimização. Quanto maior o valor no índice “vitimização”, maior é o seu preço para ser vendido. Demonstro como é essa matemática: Ser pobre=bom, mas nem tanto; Ser negro e pobre = muito bom; Ser negro, pobre e trans = bingo! Valor máximo na escala vitimização. Atingindo esse valor no índice, qualquer tipo de crime pode ser efetuado, perdoado e seu relato de superação, mesmo que não seja uma vítima de fato, mas vítima das injustiças das estruturas sociais, pode ser contado com orgulho aos quatro cantos. Um passe livre é dado pelo pessoal mais progressista ou os chamados guerreiros da justiça social, em inglês, social justice warriors(SJW).

É importante frisar que o problema não é mostrar um criminoso querendo mudar de vida, nem o abraço, nem ser trans, pois, isso ocorre nas cadeias de todo o Brasil, por milhares de homens e mulheres, sem câmeras nem microfones, que estão equipados somente com a mensagem do evangelho (como foi posto en passant, na matéria). A questão é querer ganhar pontos com os guerreiros da justiça social (SJW), para isso, pintaram um quadro mais bonito que a realidade sangrenta. Na cegueira de agradar esse grupo, acabam passando por todo o bom senso e o tiro acabou saindo pela culatra. As palavras de Theodore Dalrymple, o pseudônimo de Anthony Daniels,um psiquiatra que trabalhou por anos em cadeias na Grã bretanha, são certeiras: “o sentimentalismo é o progenitor, o avô e a parteira da brutalidade”[2]. Quando uma historia é muito cor-de-rosa, bonitinha e limpinha demais, se prepare, porque a violência e brutalidade estão às portas.

Para entendermos as origens da cultura do vitimismo e o culto à vítima, é necessário pelo menos uma pequena introdução ao pensamento de Rousseau. Podemos colocar o filosofo francês, como o pai do vitimismo contemporâneo.

Rousseau, o pai do vitimismo

Jean-Jacques Rousseau (1712–1778)

O pensamento mais famoso de Rousseau é que o homem nasceu bom e foi corrompido pela sociedade. Na sua visão, o homem em seu estado original é essencialmente um animal como qualquer outro, impulsionado por dois princípios-chave de motivação: piedade e instinto de preservação. No estado pré-sociedade ou de natureza, o homem não utilizava a razão, mas sim, utilizava o instinto, estava sem nenhuma relação moral, logo, não havia conceito de bem e mal; possuía poucas necessidades e era essencialmente feliz. Os homens possuem um instinto natural, o amor de si, que é piedoso, inocente e compassivo. Ele faz com que os homens queiram preservar a espécie mutualmente e socorrer aqueles necessitados. Nesse estado, não há necessidade da razão ou de leis, pois todos ouvem sua “doce voz” interior e a obedecem. Esse é o estado perfeito para Rousseau, entretanto, quando o primeiro homem cercou um pedaço de terra, e disse: “isto é meu”, e depois encontrou pessoas crédulas suficientes para acreditar nele, estava fundada a sociedade civil[3] (p.259), e toda a corrupção tem inicio. Essa é a premissa do livro Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens(1775) e a base de seu pensamento que seria melhor trabalhado no futuro.

Qual é o problema dessa visão “romântica”, acerca do ser humano? Ela leva ao pensamento de que o indivíduo não é capaz de fazer qualquer tipo de maldade, pois sua natureza é boa. Sendo assim, todo mal vem da sociedade corrupta, o que tira a responsabilidade individual e coloca sobre toda a sociedade esse fardo. Com isso, a vítima deve ser acarinhada, não importando o que ela tenha feito, pois nao foi ela que fez, mas a sociedade que a levou a cometer tal ato. Jean Starobinski aponta a propensão de Rousseau de colocar o homem como naturalmente bom e isento de responsabilidades: “Pois apenas o fardo externo da perseguição o isenta do peso interior da responsabilidade. Rousseau se absolve acusando: todo defeito está do lado de fora”.[4]

Essa é a base filosófica do vitimismo atual. As vítimas da sociedade como Suzy, são elevadas a heróis pelos justiceiros sociais, mesmo que seus crimes possam ser graves como a violência sexual contra menores, crime tão grave que os próprios criminosos não o aceitam! Entretanto, esse mesmo grupo ávido por fazer justiça e perdoar criminosos, ao menor cheiro de linguagem inadequada ou alerta de estupro, sem nenhuma prova, dependendo de qual seja o espectro politico do acusado(a) é cancelado ou absolvido. Esse duplipensar Orweliano, ou seja, o sujeito não consegue perceber a contradição entre suas crenças é a ética imposta goela à baixo. Um pensamento que é aprovado ou desaprovado dependendo de que lado venha a ofensa,como posto por Mark Lilla :

As proposições tornam-se puras ou impuras, não verdadeiras ou falsas. E não apenas proposições, mas palavras simples. Identitários de esquerda que se consideram criaturas radicais, contestando isso e transgredindo aquilo, tornaram-se como professoras protestantes carolas quando se trata da língua inglesa, analisando todas as conversas em busca de locações obscenas e batendo nos dedos de quem as usa inadvertidamente.”[5]

São as velhas carolas do twitter, transvestidas de jovens progressistas, que ditam as regras. Lilla continua com seu argumento: “Somente aqueles com um status de identidade aprovado podem, como xamãs, falar sobre certos assuntos. Grupos particulares — hoje os transgêneros — recebem um significado totêmico temporário. Os bodes expiatórios — hoje oradores políticos conservadores — são devidamente designados e fogem do campus em um ritual de purificação”[6]. Nesse pensamento binário, no qual, os transsexuais se tornam seres divinos além do bem e do mal e os heteros-brancos-conservadores como os causadores de todos os males, provoca um sério problema. Crimes como racismo, feminicídio, transfobia continuam a acontecer, entretanto, por causa do raio-x ideológico, que deve ser passado antes de se averiguarem os fatos, os verdadeiros criminosos, que podem ser tanto a “maioria” quanto a “minoria”, e as verdadeiras vitimas são tanto esquecidas quanto suas histórias relativizadas. É a máxima: se todos são estupradores, ninguém é estuprador ou se todos são vitimas, ninguém no final é vítima.

Outro problema surge, o culto à vítima, também causa o temor de pessoas de diferentes etnias, sexos ou religiões possam ter uma conversa amigável.Por exemplo: Em uma conversa de um branco com um negro, ou de um gay com um hetero, sempre haverá o temor do“privilegiado”, na escala vitimista, de ofender ou apertar algum botão identitário desapercebidamente, utilizando uma linguagem inadequada e ser taxado de transfóbico, homofóbico, racista ou fascista. O resultado, ao invés de aproximação e empatia entre os individuos, que será gerado, será o afastamento cada vez maior e o estranhamento.

A conclusão é que não é possível, criar uma fábula de que as minorias são seres mais elevados, e que por isso, devem ter passe-livre para cometer todo tipo de barbárie. Todos os humanos tem um “que” de anjos e demônios, não é a raça, sexo ou condição social que extingue tal fato, é por isso que a visão cristã ainda é aquela mais justa para com todo o indivíduo, como explica Dalrymple:

A visão cristã é muito menos sentimentalista do que a secularista. A secularista enxerga vítimas por toda parte, hordas de sofredores que precisam ser resgatados da injustiça. Nessas circunstâncias, tornou-se vantajoso reivindicar para si a condição de vítima — psicológica e, às vezes, financeiramente — porque ser uma vítima é ser beneficiário da injustiça. É por isso que tantas pessoas altamente privilegiadas, que, pelos padrões de todas as populações que já existiram, levam uma vida de conforto, liberdade e possibilidade extraordinárias, reivindicam a condição de vítimas. Por outro lado, a visão cristã reconhece que a tolice e a maldade são parte indissociável da condição humana. Elas variam em grau entre os indivíduos, mas são intrínsecas a todos nós. É por isso que é possível para alguém que acredita no Pecado Original, o mais útil de todos os mitos, ser perceptivo e compassivo ao mesmo tempo, mas é muito difícil para alguém que acredita na bondade natural da humanidade, que perdoa tudo porque afirma entender tudo, e assim se torna indiferente e insensível.[7]

Que amor seja espalhado, cadeias visitadas, mas que seja utilizado o minimo bom senso de não demonstrar virtude aos quatro cantos, para ganhar alguns pontos na escala da vitimização. Nas palavras de Jesus: “… não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita.”(Mt.6.3)

BIBLIOGRAFIA:

[1]https://www.oantagonista.com/sociedade/trans-abracada-por-drauzio-no-fantastico-matou-e-estrangulou-menino-de-9-anos/

[2]DALRYMPLE,Theodore. Podres de mimados: As consequências do sentimentalismo tóxico, 2015.p.51

[3] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 1983, p.259

[4] KESSLER, Steven. Victimology 101: Rousseau, Victimhood, and Safe-Spaces. 2019. In: https://theimaginativeconservative.org/2019/04/victimology-jean-jacques-rousseau-victimhood-safe-spaces-steven-kessler.html

[5] LILLA, Mark. The Once and Future Liberal: After Identity Politics, 2017. (versão Kindle )

[6] Ibid.

[7] DALRYMPLE, op.cit.p.175

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2