Sobre arrancar olhos e cortar mãos

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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4 min readAug 21, 2023

Se o seu olho direito o faz tropeçar, arranque-o e lance-o fora…(Mateus 5.29)

O evangelho nos chama a uma abordagem radical em relação ao pecado e à nossa natureza caída. Ele não permite qualquer tipo de barganha ou áreas cinzentas para esconder a nossa natureza pecaminosa. O evangelho atinge a raiz do problema e oferece a única solução verdadeira para a nossa redenção.

Às vezes, uma abordagem negativa pode ser mais eficaz do que uma positiva para lidar com nossos desejos pecaminosos. Assim como uma criança que deseja tocar a tomada, mesmo conhecendo os riscos, somente o temor ou a intervenção firme dos pais podem impedi-la de agir. Da mesma forma, nosso desejo irracional pelo pecado está presente em todos nós, assim como aconteceu com nossos pais, Adão e Eva.

O caminho radical contra o pecado é necessário porque nosso desejo infantil por quebrar regras e transgredir limites nos leva à desobediência e à queda. É melhor renunciar a essas coisas do que colocar em risco nossa relação com Deus.

Jesus fala sobre esse radicalismo no evangelho quando diz: “se o seu olho direito o faz tropeçar, arranque-o e lance-o fora. É melhor perder uma parte do seu corpo do que ser todo ele lançado no inferno” (Mateus 5:29). O texto, apesar da ordem explicita de arrancar o olho e mais à frente arrancar a mão fora (Mt.5.30) não nos incentiva a realizar esse ato, pois seria inútil. Cortar sua mão ou arrancar seu olho não fará o pecado desaparecer magicamente. Sua luta contra o pecado terá que prosseguir, pois sua outra mão e o outro olho estarão prontos para continuar pecando. Mesmo que você os arrancasse, sua mente ainda seria um canal livre para o pecado. Como bem explicou Bruce: “A mutilação não servirá ao propósito; pode impedir o ato externo, mas não extinguirá o desejo”. Portanto, o ensinamento de Jesus não é contra o corpo, mas contra o desejo intenso (epithumeo) (Mt.5.28), que significa “almejar, desejar e cobiçar”. A palavra sugere um desejo focado, crescente e intenso. Assim, o texto não trata de braços e olhos arrancados, mas sobre o desejo desenfreado que nasce dentro do coração humano. O olho e o braço podem se tornar instrumentos para dar vazão ao pecado que habita no interior. Desta maneira, se nossos olhos e mãos, ou melhor, nossa visão e nossas ações, estiverem a serviço do desejo pecaminoso, devemos sacrificá-los para preservar a pureza do corpo. Eles devem ser controlados para que o pecado não floresça e dê seus frutos, o que acaba em morte.

Outra suposição infantil é achar que no momento em que entregamos nossas vidas a Cristo, o pecado miraculosamente desaparecerá dela. Uma frase de Lutero ficou famosa pela forma bem-humorada com que aborda esse sério problema: “Pensei que o velho homem tinha morrido nas águas do batismo, mas descobri que o infeliz sabia nadar”. Esse “infeliz” que habita em nós é o velho homem que está vivo e atuante. Ele convive e influencia tanto nossos pensamentos quanto nossas ações. Nesse caso, se a vontade de “arrancar olhos e mãos” não estiver em nós, somos presas fáceis para o pecado. Essa vontade é, sem dúvida, uma dádiva do Espírito Santo que a usa como motivação para que possamos lutar contra nós mesmos.

O autor aos Hebreus nos convoca a uma luta ardua contra o pecado, chegando até verter sangue (Hb.12:4). Creio que não percebemos, muitas vezes, a gravidade desse desafio e a dificuldade que é lutar contra ele e, por consequência, contra nós mesmos. Essa batalha será uma jornada ao longo de toda a vida.

Então, o que fazer diante de tamanho adversário, ou seja, o nosso desejo intenso habitando dentro de cada um de nós?

O Apóstolo Paulo nos oferece uma resposta sólida: “Não ofereçam os membros do corpo ao pecado como instrumentos de injustiça, mas, como pessoas que passaram da morte para a vida, ofereçam a si mesmos a Deus e entreguem seus membros a Ele como instrumentos de justiça” (Romanos 6.13). Embora pareça uma solução simples, trata-se de usar os mesmos membros que antes buscavam satisfazer seus próprios desejos e entregá-los Àquele que pode utilizá-los da melhor maneira possível. Portanto, a solução não é cortar os membros pecaminosos, mas empregá-los para glorificar a Deus como instrumentos (ὅπλον) de justiça. Nesse contexto, o termo mais adequado seria “arma”, como era conhecido pelos antigos gregos. Ou seja, devemos entregar nossos membros para se tornarem armas poderosas contra o pecado e, além disso, úteis para o reino de Deus.

Dessa forma, devemos abandonar nossas tolas intenções de lutar com nossos braços e olhos fracos, subjugados aos desejos, e entregá-los ao “armeiro” que reparará, modificará, reconfigurará e lhes dará o uso correto. Não devemos permitir que o temor de que tudo isso seja uma mentira nos domine. O apóstolo Paulo, com a segurança proporcionada por Jesus Cristo, assegura-nos que “o pecado não terá domínio sobre vocês”. Essa é uma realidade na qual devemos nos firmar, como ele prossegue, “pois vocês não estão debaixo da lei, e sim da graça” (Rm.6:14). A lei, que antes apenas apontava o pecado, porém não oferecia solução. Agora, sob a graça, não apenas identificamos o que está incorreto, mas também desfrutamos da capacidade do perdão e da superação do erro. Isso nos possibilita restabelecer nossa comunhão com Deus. Portanto, confiar na graça é o caminho para nos libertarmos do domínio do pecado e vivermos em justiça, sabendo que em Cristo, nossos membros não serão arrancados, mas transformados para Sua glória.

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2