Clarisse Lispector: Sobre meninos e ratos — O que um rato morto pode ensinar sobre Deus?

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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7 min readJul 14, 2020
Field Mouse — Rebecca Wolfram

Clarisse Lispector escreve em seu conto Perdoando Deus(1971), que uma personagem sem nome, andava pela avenida Copacabana “sem pensar em nada”, e só quem é do Rio sabe a sensação de andar e ver aquele mar de gente e o mar por entre os prédios,o vento batendo no rosto, quando tocada pela paisagem se percebe inundada por uma sentimento de liberdade e amor tão grande que sente que poderia ser a mãe de Deus, a própria terra e o mundo.

A personagem, assim como nós, voando em nossos devaneios, se achava tão superior andando por esse mundo, entorpecido pelo vento e a vista beira-mar, seja em Copacabana, Ipanema ou Cabo Branco, pode até ser um lugar não tão bonito, não importa, andamos altiveiros pelas avenidas e ruelas, achando que podemos amar o mundo inteiro, tão amorosos que podemos até amar a Deus se fosse possível, com amor de pai ou de mãe.

Voltando ao conto, na caminhada, a personagem não percebe, mas pisa em um rato morto. “Um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo.”. Desse animal morto, Clarisse começa uma série de reflexões sobre a existência. Ela caminhava confiante, dona do mundo, podendo amar toda a criação e até ser a mãe de Deus, mas se depara com o inesperado, com o caos, com o mal, um rato asqueroso morto, estragando todo o devaneio, toda a perfeição da paisagem e do “daydreaming” da personagem.

A vida é perfeita e maravilhosa até que os ratos da existência surgem, que a vida faz questão de jogar à nossa frente. Essa é a cruel realidade que Clarisse Lispector brilhantemente expõe. Há sempre um rato morto que nos trás de volta para a existência cruel, que não podemos submeter nem tocar. O rato me dá nojo, entretanto, revela a real condição da finitude humana.

Mudando de cenário, ainda praiano, viajamos para Galileia, dois mil anos antes, Jesus e alguns discípulos estavam no monte da transfiguração(Mc.9.2–29). Jesus manifesta-se glorificado, juntamente com Moises e Elias. Pedro ao ver tal cena, sendo o mais afoito dos apóstolos, propõe que façam três tendas, uma para Jesus,uma para Elias e uma para Moisés. Depois de tamanha visão, cheios de si, descem o monte. Porém, o inesperado acontece, no pé da morro, se deparam com um menino endemoniado e de tão amorosos, no mesmo instante, se acovardam e não podem fazer nada para ajudar aquele menino.

Depois de pisar no rato, a personagem de Clarisse ao invés de revoltar-se contra a existência, revolta-se contra Deus. Por que Ele haveria de fazer algo assim?Por que eu sou atacada com um rato morto, depois de tantas boas intenções? A personagem se mostra quase uma Jó feminina. Ela indaga:

eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

O rato morto, a fez deixar seus sonhos infantis, mostrou a realidade de Deus, Deus era bruto, não era o “bom velhinho”, lançar-se contra Ele seria de uma infantilidade tremenda, pois com um simples rato morto, Ele se revela todo-poderoso e faz acabar, sem fazer o menor esforço, todo aquele amor pelo mundo.

Ratos mortos, meninos endemoniados, essas são as realidades que eu não consigo amar. Somente Deus pode amar tal realidade cruel, somente Ele pode ver para além do mal do mundo. Ele vê o mundo como é de fato, “ o mundo também é rato”, ela prossegue, “e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.”

Ela chega a conclusão de que é rato, aquilo que era asqueroso a pouco tempo atrás, mostra-se como nossa cruel realidade. Somos como ratos mortos, putrefatos, pecadores longe de Deus, arrastados por nossos delitos e faltas. A conclusão é de que Amar não é fácil, por isso, somente Deus pode amar este mundo, somente Ele pode nos amar, nós não amamos assim, não conseguimos aceitar essa existência como é: de morte, desordem e dor. Calculamos o amor com uma matemática ginasiana, onde 2 e 2 são sempre 4, Deus está fora disso, no mundo dEle essa matemática não cabe. 2 e 2 podem ser 5 ou 6, dependendo de seu querer. Ele ama para além dos nossos pecados e somente ele pode nos ferir de maneira que nos cure. “Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala.”. De fato, não podemos ver como nós mesmos, somente Deus pode ver para além dessa existência cruel, Ele nos vê melhores do que ratos mortos ou meninos endemoniados, Deus vê filhos, que serão resgatados e renovados nEle.

A personagem chega a outra conclusão interessante, amamos o que queremos e não as coisas como são. A explicação é triste de uma visão materialista, mas extremamente esperançosa de um ponto de vista cristão: “É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele.” Fomos amaldiçoados por nossas escolhas egoístas. Todo cosmo foi condenado à vaidade, da vaidade de nossos desejos, o que podemos amar são apenas sombras. O verdadeiro amor, está alijado de nós, foi retirado e deixado no Edem. Nossa triste sina é amar o que o mundo não é.

Mas há esperança, ainda não somos nós mesmos, somos como Lewis afirmou “máquinas velhas “ dando defeitos ou cavalos que no máximo podem aprender a saltar mais alto, mas em Cristo, seremos máquinas totalmente novas e cavalos que não pularão mais alto, mas voarão.[1]

Essa maldição começa a ser quebrada, de amar o mundo de nossas fantasias, e não o mundo real, quando começamos a ter uma visão correta de quem Deus é: “Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus.”

O primeiro passo é amar a Deus e não o meu contrário, ou seja, amar a Deus pelo que é, não somente a ideia de sumo-bem, ou o bem dos bens. Por isso, os ratos da existência são importantes, pois permitem enxergam quem amamos e como amamos.

Pela falta de fé dos discípulos, Jesus entra em cena, e vai de encontro ao Pai do menino endemoniado. Jesus faz uma pergunta, como numa consulta médica, “Há quanto tempo isso acontece?” O pai responde que desde a infância, e complementa que não sabe mais o que fazer, pois “(o espírito) tem lançado no fogo, na água, para o matar;” e meio desesperado, meio duvidando, diz: Se tu podes alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos.” Jesus se desfaz de médico e mostra que Ele é muito mais poderoso, Ele pode todas as coisas, pois “tudo é possível ao que crê”.

Aquele pai angustiado cai na realidade de si mesmo, e percebe com quem estava falando, não era um mero médico ou um curioso, era o médico dos médicos, o que faz “vento e mar se acalmarem”. Diante da constatação ele só pode chorar e falar uma das respostas mais humanas da bíblia: “EU CREIO!” Ele continua, “ajuda-me na minha falta de fé!”. Depois disso, Jesus curou o menino.

Quando Jesus retornou, os discípulos queriam saber por que não conseguiram expulsar o demônio e Jesus singelamente responde que esse tipo ou casta, só pode ser retirado com oração. Era a oração, não como manipulação do divino, mas dependência de Cristo que faltava aos discípulos e essa lição valiosa só foi aprendida porque um menino endemoniado cruzou o caminho.

Clarisse termina o conto constatando que Deus não era quem esperava, não o Deus que podia ser colocado em sua mente e sentimentos banais, Deus é muito maior e não fala aos homens com anjos ao redor do alto sublime trono, mas em “Perdoando Deus”, Ele surge no comum,naquilo que é desprezível no caos do mundo. Como suportar Deus desse jeito? Foi no pisão em um rato morto que ela pode enxergar quem ela era e quem era Deus:

Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

Enquanto inventarmos Deus, achando que Ele só está no monte ou somente no amor inventado por nós mesmos, Ele não existirá, estaremos inventando um outro Deus, talhado por nossos sentimentos e pensamentos, que nos agradará e na realidade estaremos adorando e amando a nós mesmos refletidos. No final das contas, ratos e meninos podem nos ensinar muito mais sobre quem somos e sobre quem servimos do que uma vã filosofia.

BIBLIOGRAFIA:

LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples.São Paulo:Martins Fontes.2014. p.284–286)

LISPECTOR, Clarisse. “Felicidade clandestina”. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Em:https://www.revistaprosaversoearte.com/perdoando-deus-um-conto-provocativo-de-clarice-lispector/

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2