Soul-less — A Religião sem alma contemporânea

Thiago Holanda Dantas
vanitas
Published in
8 min readJan 29, 2021
DIsney.Pixar: SOUL(2020); Pete Docter e Kemp Powers

Soul(2020) é o mais novo filme da produtora Pixar, que conta a história de Joe Gardner(Jamie Foxx) um professor de música de ensino fundamental frustrado por não ser um músico profissional que sonha tocar no lendário clube de jazz The Blue Note em Nova York. A frustração de Joe parece ter fim quando recebe um telefonema de um ex-aluno para fazer um teste na banda de jazz de Dorothea Williams (Angela Bassett). O teste vai bem, Joe ganha a vaga e a chance de realizar seu sonho, mas Joe está tão empolgado que não olha para onde anda e infelizmente cai para a morte em um bueiro aberto.

Depois da queda fatal, a aventura começa, quando a alma de Joe é enviada para o Grande Além — uma escada rolante onde as almas se alinham para seguir em direção a uma luz branca. Joe não aceita seu fim, então ele foge na outra direção, cai da passarela e termina em uma zona de cores vivas, chamada de O Grande Antes.

Nesse local, as almas jovens se preparam para encarnarem na terra. No Grande Antes as almas devem descobrir sua centelha(Spark em inglês e traduzido como paixão em português) para que tenham uma vida feliz e produtiva na Terra. Joe se disfarça de instrutor e conhece 22 (Tina Fey), uma alma velha que se recusou a encarnar na terra, apesar dos esforços dos maiores mentores que já passaram pela terra, como Gandhi e Madre Teresa. E assim cabe a Joe ajudar 22 a encontrar sua centelha e encarnar no mundo.

Esse é o enredo do filme, que se passa entre os dois mundos de almas(Soul), seja desencarnadas no Grande Antes ou encarnadas na Terra. No andar de cima, onde as almas se preparam para encarnarem, se parece como uma empresa. Temos funcionarios todos chamados de Jerry que carregam pranchetas, fazem reuniões, videos corporativos e etc… O único que possui nome diferente é o “contador de almas” que se chama Terry. Ele usa um ábaco para contar as almas e usa arquivos infinitos com todos os registros de almas que já passaram pela Terra. Ou seja, a ideia de “céu” do século XXI é tão pobre, com um misto de tecnologia corporativa de ponta por um lado que é utilizada para que as almas encontrem sua “paixão” seja no Salão de Tudo, que se assemelha a um parque de diversões com todas as coisas que podem despertar essa paixão pela vida na terra ou nas palestras e vídeos feitas pelos Jerries que parecem os Coaches atuais e suas técnicas corporativas. Do outro lado, está a mais arcaica burocracia, que se utiliza de um ábaco e de arquivos de papel para analisar as almas que entraram na Terra. Dai tiramos uma ideia de paraíso contemporâneo. As almas são uma mistura entre o modernismo de Picasso com as ideias de platônicas e seu “banco de almas” aguardando para encarnar.

Em Soul o lugar que se aproxima mais com algum tipo de transcendência é uma espécie de limbo, que 22 explica que é “o lugar entre o físico e o espiritual”. Este lugar é onde as almas acessam quando se conectam de tal maneira com alguma atividade que viajam e podem sentir duas coisas: Seja um deleite incomparável como quando um ator está em uma peça, um músico tocando ou um jogador de basquete enterrando uma bola, ou de compulsão, que às transforma em “almas perdidas” vagando em atividades monótonas, como um trader que só pensa em comprar ações. Nesse limbo estão os dois extremos: prazer e dor lado a lado, só sendo distinguíveis pelas sensações que promovem.

O papel de religião é dado a um grupo de Hippies chamados de Místicos Sem Fronteiras. Eles navegam pelo reino espiritual em um navio com velas de tie-dye. Eles estão espalhados pelo mundo e dão o toque transcendental em uma versão pós-moderna de religião “técno-hippie” que mistura vale do silício, Tibete, Filipinas e Nova York. Esses são os locais de onde os sacerdotes contemporâneos se conectam através de uma sessão de meditação e transe. Obviamente, para não fugir ao que é chamado nos EUA de “espiritual mas não religioso”, o sacrificio é feito somente uma vez semanal por uma hora. São eles que ajudam Joe e 22 a voltar à Terra a tempo do show de jazz.

A VIDA É UM SHOW DE JAZZ

Joe e Dorothea — SOUL(2020)

Assim, entra em cena o Jazz que guia as motivações de Joe e dá sentido(ou não) ao mundo de Soul. O Jazz é um gênero musical marcado pelo improviso. É ali, no meio da apresentação, que os artistas criam e respondem às notas tocadas pelos outros músicos formando novas melodias. Nesse caso, cada show de Jazz, mesmo que seja tocado a mesma música com os mesmos artistas e os mesmos instrumentos, soa completamente diferente.

A vida em Soul é uma improvisação de jazz, com o seu sentido ali no momento em que os artistas tocam e se tornam um com sua música. Joe, no primeiro ensaio da Banda de Dorothea, tenta descobrir qual a partitura da música que a Banda toca. Dorothea improvisa no sax e Joe tem que acompanhar no piano. Essa é a vida, uma nota após a outra, tocadas por cada um de nós, que parecem aleatórias, mas se encaixam à melodia que é tocada pela vida. Essa é a bela mensagem de Soul — Aproveitar as pequenas e aleatórias coisas da vida, como uma apresentação de Jazz. Essa é a mensagem que o filme quer passar mostrando que Joe estava tão focado em entrar em uma banda de jazz, que não dava valor as coisas simples e comuns, como dar aula ou ligar para a pessoa amada.

A I-RELIGIÃO CONTEMPORÂNEA

Mas ao mesmo tempo, essa aleatoriedade e beleza no momento da apresentação se revelam vazias e sem propósito. Um jornalista inglês disse que Soul é “A história de um professor de música que perde a vida, mas descobre a alma”. Eu digo que no mundo de Soul, se perde a vida e a alma para se ganhar pequenos prazeres sem propósito superior. Não sou um amargurado, o filme é bonito e vale a pena ser visto, mas Soul é um retrato da irreligião contemporânea que não sabe qual a diferença entre ler os livros do Harry Potter e fazer parte daquele mundo, entre ter uma experiência escutando Jazz ou de estar em uma catedral adorando a uma divindade. Essa constatação não é minha, é de Tara Isabella Burton no seu livro Strange Rites: New Religions for a Godless World (Ritos estranhos: Novas religiões para um mundo sem Deus, sem tradução no Brasil). Ela diz que essa “religião contemporânea” é “uma celebração coletiva”, que tem como características, “uma religião de intuição emotiva, de experiencias estéticas e mercantilizadas, de autocriação e auto-aperfeiçoamento”. Burton continua afirmando que essa é “uma religião para uma nova geração de americanos criados para pensar em si mesmos tanto como consumidores capitalistas quanto como criadores de conteúdos. Uma religião dissociada de instituições, de credos, de afirmações metafísicas sobre Deus ou o universo ou a maneira como as coisas são”, Entretanto, essas mesmas pessoas ainda buscam “ — de várias e diferentes maneiras — […] os pilares que a religião sempre ofereceu: significado, proposito, comunhão e ritualística.”

Isso fica explicito no filme quando Joe, depois de reencarnar e finalmente realizar o seu sonho de infância de tocar em uma Banda de Jazz, entre aplausos e assobios de sua apresentação, sente o vazio de ser somente isso e nada além. Ele questiona Dorothea e tem o diálogo mais interessante do filme:

Joe: É que tenho esperado por este dia por toda a minha vida. Achei que me sentiria diferente.
Dorothea:Eu ouvi essa história sobre um peixe. Ele nada até um peixe mais velho e diz: “Estou tentando encontrar essa coisa que eles chamam de oceano.” “O oceano?”, Diz o peixe mais velho, “é isso que você está agora.” “Isto?” diz o peixe mais novo: “Isso é água. O que eu quero é o oceano”.

Joe e Dorothea — SOUL(2020)

Queremos algo maior do que essa existência, se não ficamos com a plena sensação de que nossas maiores glórias, conquistas e vitórias, não servem de nada e sempre deixam o gosto amargo de um “É somente isso?”. Joe é o peixe jovem que quer mais do que água e Dorothea, a experiente cantora, é o peixe velho que entendeu que não há nada além da alegria e dos aplausos para extrair dessa experiência chamada Jazz e isso é o bastante para ela.

Esse gosto amargo é o anseio de cada ser humano que passou pela terra por significado para além da vida terrena. Não há propósito no universo de Soul. O Além é um céu corporativo e impessoal, não existe um chefe ou Deus, somente processos, vazios de sentido superior, que tem o único propósito de preparar para viver na Terra e depois caminhar por uma escada-rolante em direção a uma luz branca para ser aniquilado. Então, o que resta, é aproveitar, da melhor maneira possível a curta passagem terrena.

Se a vida na terra se torna tudo o que existe, a transcendência deve ser achatada para caber em um breve momento, entre prazeres e coisas simples, como cortar o cabelo, comer um pedaço de pizza ou ser ovacionado em uma bela apresentação artística. Entretanto, em um velho livro, está escrito que a vida passa com a velocidade da névoa matutina ou na singeleza de uma erva que hoje brota com todo seu esplendor e beleza, mas amanhã e levada pelo vento. Essas coisas não são a vida verdadeira, são apenas presságios, sombras e pistas de que há algo para além desses pequenos prazeres. Lewis explica bem melhor, dizendo que “Se nenhum dos prazeres terrenos satisfaz esse desejo, isso não prova que o universo é uma tremenda enganação. Provavelmente, esses prazeres não existem para satisfazer esse desejo, mas só para despertá-lo e sugerir a verdadeira satisfação.”. Os pequenos prazeres e desejos insatisfeitos são aperitivos para o prazer verdadeiro. Fomos criados para prazeres maiores que comer pizza ou ser um músico famoso de Jazz ou qualquer outra coisa que a existência terrena nos apresenta.

SERÁ QUE É SOMENTE ISSO?

Peggy Lee cantava nos anos 60 em “That’s all there is?(Isso é tudo?)”, que tem seu refrão:

“Isso é tudo que existe, isso é tudo que existe?
Se isso é tudo, meus amigos, então vamos continuar dançando
Abram a bebida e vamos nos divertir
Se isso é tudo que existe”

O Apostolo Paulo chega a mesma conclusão, se toda a luta e pregação do evangelho são ações humanas sem sentido e a ressureição dos mortos, alicerçada em Cristo, é apenas uma fantasia, então “comamos e bebamos, pois amanhã morreremos”(1 Co.15:32). Nada pode dar o sentido que queremos somente nesta vida. Ela é pequena e breve demais. Na realidade, somos como Joe, o peixe que pergunta pelo oceano, pois a água não é o bastante.

Eu não quero água. Eu quero o oceano e nada menos que isso!

BIBLIOGRAFIA:

LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples. 2017

BURTON, Tara. Strange Rites: New Religions for a Godless World.2020

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2