The Rehearsal: O Ensaio da vida real

Thiago Holanda Dantas
vanitas
Published in
5 min readAug 20, 2022

E se pudéssemos ensaiar os momentos mais importantes da nossa vida?

Nathan Fielder — The Rehearsal (2022) — HBO Max

Gosto de filmes ou séries que tem a premissa do “e se”, nem sempre a ideia é transformada em um bom roteiro, mas duas séries que estrearam esse ano, conseguem fazer isso brilhantemente.

Ruptura (que terá um texto futuramente) e O Ensaio são séries que tem premissas que brincam com nossa imaginação. Ruptura com o “e se” pudéssemos separar nossa vida profissional da particular e O Ensaio, como o “e se” pudéssemos ensaiar nossa própria vida.

O Ensaio foi criado pelo comediante Nathan Fielder que em sua série anterior, Nathan for You, ajudava empresas, com ideias mirabolantes, a ter sucesso nos negócios. Agora Fielder quer ajudar pessoas a lidar com momentos difíceis da vida, como uma conversa importante, fazer as pazes com um irmão ou, até, alguém poder ensaiar ser mãe e pai de uma criança.

No seriado, alguns voluntários o procuram querendo resolver um problema. Seu plano é ajudá-los ensaiando aquele momento, com a ajuda de atores, em cenários milimetricamente construídos onde irá se desenrolar a solução desse problema. Fazendo isso Nathan espera poder antecipar alguma dificuldade e, assim, conseguir realizar o seu objetivo. Mas não pense que o ensaio seria uma simples conversa sobre a questão. Fielder tem ânsia pelo controle, algo quase doentio pela experiência perfeita. Seu objetivo é fazer com que a vida possa atingir a perfeição através do ensaio exaustivo de cada movimento. A meta é que a vida possa ser um sucesso completo.

(SPOILERS DO PRIMEIRO EPISODIO)

Sua obsessão chega aos mínimos detalhes. Vemos isso logo no primeiro episódio. Somos apresentados a um professor chamado Kor Skeete que deseja esclarecer uma mentira a sua amiga de Trivia (um tipo de jogo de curiosidades): Ele não possui mestrado somente a graduação, algo que parece banal, porém isso o consome. Nathan, ao chegar ao apartamento de Kor, começa a tentar quebrar o gelo na primeira interação entre os dois. Ele consegue alguns sorrisos de Kor, porém, confessa que isso é fruto de um ensaio planejado detalhadamente com um ator parecido com Kor. Além do mais, Nathan manda construir o apartamento em escala real, para isso, forja um vazamento de gás falso para que uma equipe pudesse mapear todo o apartamento e construí-lo. A resposta de Kor a esse extraordinário plano é “Uau”. Essa foi a mesma resposta do ator no ensaio. Nathan parece estar atingindo seu objetivo.

Nathan Fielder, à direita, com seu primeiro participante ou vítima, Kor Skeete, em The Rehearsal.

Nós temos a mesma sensação de Kor: “Uau”. Essa ideação e a obsessão pela experiência perfeita foge do controle algumas vezes. Kor mesmo com uma atriz parecida com sua amiga; com um bar reconstruido em seus detalhes e com dezenas de atores. Não consegue ter a experiência perfeita. A atriz, que interpreta sua amiga, não aceita a mentira e saiu de rompante pela porta do bar. Nada pode ser tão bem ensaiado assim…

Na vida real, nada disso aconteceu. Sua amiga Tricia não pareceu ligar para isso, o parabeniza pela honestidade e ainda ficou mais próxima de Kor. A história parece ter um final feliz. Mas para Nathan Fielder isso não fica muito bem. Para que Kor obtivesse sucesso em sua confissão, ele deveria acertar as respostas da Trivia. Nathan entrega essas respostas sem que ele saiba, pois para Kor, o jogo era algo sagrado e mentir estava fora dos planos. Nathan, para atingir seu objetivo, contrata atores que vão informando as respostas enquanto fazem uma caminhada. O plano foi um sucesso, mas isso foi trapacear e Nathan ficou preocupado com isso. Na cena final do episódio, Nathan parece conversar com Kor sobre como ajudou a trapacear neste jogo de trivia. Mas na verdade, Nathan está ensaiando com o ator contratado para substituí-lo. O ator responde de forma irritada. A câmera corta para o Kor “real”, mas nós nunca sabemos qual foi a sua reação. Ficamos somente com a resposta do ator.

O ator que interpreta Kor.

…Come with me

And you’ll be

In a world of pure imagination

Take a look and you’ll see

Into your imagination…

Uma música toca no momento final do episódio. Ela é um dos temas da Fantástica Fábrica de Chocolate e faz nos lembrar que essa é a fictícia realidade de Nathan. Assim como Willy Wonka, Nathan escolhe viver em um mundo de pura imaginação. Ele pode construir o mundo que quiser, contratar atores para viver qualquer papel e brincar de Deus com a vida de outras pessoas. Porém sua vida continua tendo que ser vivida. “Viver é perigoso” disse certa vez Guimarães Rosa: não há espaço para segundas chances.

A ironia é que aquele que tinha tanto medo de uma reação ruim de sua amiga viu que era algo pequeno. A verdade pode libertá-lo desse fardo. Nathan por outro lado, não quis enfrentar as consequências de sua mentira, ele preferiu sustentá-la e viver em sua imaginação. Geralmente nossos maiores temores não são tão assustadores quando postos à luz da vida real. Nathan prefere continuar em seu mundo planejado.

Isto ocorre porque ele não consegue abrir mão do controle. Sua vida deve sempre ter resultados previstos, com o sucesso garantido em todas suas interações humanas. Porém, nada disso pode acontecer. Isso continua a ocorrer nos outros episódios com sua tentativa de ser um pai faz-de-conta ou um melhor professor de teatro. Nathan revive cada momento que pode ter uma pequena falha. Usa seus recursos financeiros para recriá-los numa espiral sem fim. Ele acaba por viver um teatro absurdo, tentando controlar as interações nos mínimos detalhes. Esse controle sugere o fracasso de viver a própria vida e ao mesmo tempo tentar controlar a vida dos outros. William Shakespeare escreveu que a vida é como um palco, no qual atores dão suas falas e desaparecem. A vida é, de fato, uma grande peça de teatro, entretanto, só pode ser encenada uma única vez. Ensaios não são permitidos na peça da vida real.

Rehearsal ou o Ensaio nos faz pensar sobre como o medo de viver a vida pode paralizar nos de viver a vida real, cheia de dificuldades e mal-estares. O seriado faz nos enxergar que somos todos apenas falsificações tentando viver uma versão construída de uma vida que achamos perfeitas para nós. Fielder resume seu projeto no primeiro episódio: “Talvez seja mais fácil escolher um caminho quando você pode viver o futuro primeiro, para se libertar da dúvida e do arrependimento, para sempre saber as respostas”. No final, por mais que queira, não é possível planejar cada momento. Então o que nos resta é parar de tentar, relaxar e viver o momento enquanto ele acontece.

Pode não ser o que gostaríamos, mas é o mais real que temos.

--

--

Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2