Ulisses e Orfeu contra os vícios

Thiago Holanda Dantas
vanitas
Published in
5 min readJun 12, 2022
Ulysses and the Sirens, 1891, Detail is a painting by John William Waterhouse

Mas vós com laços estreitíssimos deveis amarrar-me, para que eu fique seguro, de pé no mastro do navio; para isso, as cordas me prenderão. E se eu vos suplicasse, se vos ordenasse de soltar-me, com nós mais numerosos, apertai-me.

— Odisseia, canto XII —

Ulisses, como descrito na Ilíada, lutou durante 10 anos a batalha de Tróia e queria retornar para casa, já cansado da guerra. Entretanto, era necessário passar pela temida ilha de Calipso (sim, é de lá que sai o nome da famosa banda homônima), por suas sereias que encantavam os marinheiros com seus cantos. Para que isso não ocorresse, Ulisses pede aos seus tripulantes que o amarrem ao mastro e que eles pusessem cera em seus ouvidos para não serem encantados pela melodia dos seres mitológicos.

Na mitologia grega, as sereias eram criaturas míticas que seduziam os marinheiros por sua beleza e por seus cânticos. Eram seres belíssimos e atraíam os marinheiros contra as rochas, levando seus navios à pique.

Outro herói grego que teve de enfrentar as Sereias foi Jasão, um dos argonautas. Mesmo avisado pelo Centauro, sobre o perigo, enquanto viajava em busca da “flecha de ouro”, não foi sábio como Ulisses e resolveu adentrar o mar sem o mesmo cuidado. Quando o navio passou pela ilha e as sereias, sentadas nas rochas, começaram a cantar, a tripulação ficou encantada e começou a ir em direção às rochas. A tragédia já estava praticamente feita, quando um dos tripulantes, Orfeu, o filho dos deuses, começou a tocar sua lira, com uma canção mais bela do que a música das sereias, conseguiu fascinar os marinheiros que, desencantados pelas sereias e cheios da música de Orfeu, conseguiram passar pela ilha sãos e salvos.

ULISSES DOMINA SEUS DESEJOS

Ulisses, sabendo de sua atração, pede que seus marinheiros o amarrem ao mastro e não o soltem, mesmo que ele implorasse. Ulisses queria ouvir o canto das sereias, mas não queria ser levado à morte por ele. Ulisses se torna um exemplo da tentativa racional de poder estar próximo do objeto de desejo e mesmo assim não ser destruído por ele. O desejo deve ser dominado pela razão, assim dizem os gregos, mas será possível fazer isso, sem o auxílio exterior de uma corda e amigos para amarrá-lo?

A razão não é de todo confiável, pois ela mesma, que maquina uma maneira de vencer o desejo, será a mesma que descobrirá uma forma de burlar sua própria vontade. Por isso a ordem expressa de não desamarrá-lo, mesmo que ele implore por isso. Da mesma maneira, lidamos com nossos pecados, como se pudéssemos olhar e desejá-lo, mas sem tocá-lo, pois a razão nos ajudará, no momento exato, a escapar de sua artimanha. Mas a razão, para atingir seu objetivo, deve exercer uma vigilância permanente e utilizar de todo e qualquer ardil para vencer o desejo desenfreado. Mas será que o pobre Ulisses, sem a ajuda de seus amigos, somente com sua razão, poderia vencer a prática que sabia que o mataria?

ORFEU PRODUZ UM CANTO MAIS BELO

Orfeu, utiliza-se de estratégia diferente. Em invés de tapar os ouvidos de toda a tripulação com cera ou ser amarrado ao mastro do navio, ele utiliza o desejo, que para Ulisses e os gregos era ruim, como forma de atrair seus companheiros e a si próprio, para longe das Sereias.

Ao tocar sua lira, ela serve para encantar e produzir um desejo superior que tem a capacidade de levar todos para longe do perigo. Sendo assim, Orfeu, com sua estratégia, foi mais sábio, pois não negou o desejo, mas o direcionou para que o desejo descontrolado não viesse a destruí-los.

A inteligência de Orfeu se deu por ele não confiar totalmente na razão, nem negar o desejo, mas soube mudar o desejo, oferecendo algo melhor, que os levaria ao porto seguro e pudesse cumprir sua missão. Portanto, buscar prazeres maiores é a forma mais eficaz para que possamos nos livrar de nossos vícios e maus hábitos. A simples proibição não é suficiente contra o desejo e as paixões. O Apóstolo Paulo deixa claro:

Já que vocês morreram com Cristo para os princípios elementares deste mundo, por que é que vocês, então, como se ainda pertencessem a ele, se submetem a regras: Não manuseie! Não prove! Não toque! ?

Todas essas coisas estão destinadas a perecer pelo uso, pois se baseiam em mandamentos e ensinos humanos.

Essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne. Colossenses 2:20–23

Paulo, aqui, não está defendendo uma vida sem regras, libertina, mas está criticando a mera proibição pela proibição. Isso não é o bastante para frear nosso desejo. O produto dessa negação é somente uma “aparência de sabedoria”, nada além de regras de homens, sem proveito algum para lutar contra os vícios. Sem um desejo maior e uma sabedoria verdadeira, somos presas fáceis de nossa vontade desgovernada.

Portanto, se quisermos vencer nossos vícios, nossa razão deve estar protegida, seja com a ajuda de amigos e pelo autocomprometimento, de ficar longe do objeto de desejo. Porém, o mais importante é ter novos desejos saudáveis, que farão com que o antigo desejo que trazia destruição, torne-se pequeno em relação à nova vida alcançada. Sendo assim, o medo de voltar à antiga vida, com toda a destruição trazida, deve ser maior do que o pequeno prazer de ter seu vício saciado.

Ulisses e Orfeu sabem que são fracos e não tem chance alguma se utilizassem somente sua razão. Os dois heróis revelam a fragilidade da vontade, a insuficiência da razão e o poder do desejo. Tanto a vontade quanto a razão são impotentes contra o desejo. A racionalidade não pode estar sozinha para combater o desejo e nem o desejo desgovernado deve ser negado, mas estar canalizado para um desejo muito maior que ele mesmo. Neste caso, apenas através de seus amigos e de uma estratégia, mesmo não sendo perfeita, Ulisses sobrevive. Orfeu, sabendo a natureza do desejo humano, produz algo mais belo, direcionando sua vontade e de seus marinheiros, para atingir seu objetivo.

--

--

Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2