Você é eternamente responsável por quem cativas

Thiago Holanda Dantas
vanitas
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6 min readJan 8, 2022
The Little Prince & The Fox — Molly Adair

A famosa frase foi dita pela raposa, quando o Pequeno Príncipe à pergunta sobre o que seria cativar, como ficou a primeira tradução para o português ou seguindo o original francês apprivoisé, que significa “domesticar. A raposa responde que “é uma coisa muito esquecida, […] Significa ‘criar laços’”. E exemplifica logo a seguir:

“Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti única no mundo.”

Cativar é sinônimo de prender, aprisionar, mas também encantar, seduzir, enamorar, enfeitiçar, fascinar e envolver. O duplo caráter, tanto positivo quanto negativo, mostra a característica dos laços que construímos com as pessoas. Somos cativos delas, presos eternamente, mesmo longe ou diante da morte, continuamos a carregar essas pessoas queridas e as cativamos, ou seja às encantamos, com a nossa companhia.

Já domesticar ( apprivoisé) seria como “domar” ou “domesticar”, assim, tornar-se doméstico, de casa. Os dois, tanto cativar quanto domesticar alguém requer tempo, e hoje em dia não se está disposto a cativar e deixar ser cativado por alguém, muito menos ser domesticado. Os laços fortes perderam sua importância, não há tempo à perder com coisas, aparentemente, sem preço. Dentre essas coisas, está as amizades, os relacionamentos, as pessoas, essas “coisas”, não possuem preço, mas valor. O motivo disso, segundo a sábia raposa, seria que: “Os homens já não têm tempo para conhecer nada. Eles compram coisas prontas de comerciantes. Mas como não existem comerciantes de amigos, os homens não têm mais amigos”.

Não existe loja de amigos, mesmo que hoje possamos comprar seguidores, amigos continuam a ser incompráveis, somente podem ser adquiridos através do tempo que gastamos nesse exercício, difícil, de cativá-los. A raposa propõe ao jovem príncipe uma maneira de criar essa amizade. Ela sugere que o principezinho deveria visitá-la sempre no mesmo horário, para que se crie um ritual. Um ritual, diz a raposa, “é o que faz um dia ser diferente dos outros dias”. A visita do menino, passaria de uma mera visita, para um ritual, que criaria uma expectativa da visita diária, ela explica: “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar meu coração”.

Além da criação desse ritual diário, outro segredo da raposa para que a amizade fosse construída, era necessidade de preparar o coração. No coração, diz o autor dos Provérbios, é onde está as fontes da vida, por isso, era essencial, guardá-lo. O preparo do coração passa pelo ritual, que deveria começar bem devagar, primeiramente o menino deveria se sentar “um pouco longe […], assim, na relva. E te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás um pouco mais perto…” então, a cada dia, com um novo encontro, se aproximaria até cativar ou domesticar a raposa.

Diz-nos, o filósofo Byung-Chul Han, que “apenas as repetições chegam ao coração. Seu ritmo também se deve à repetição. A vida da qual todas as repetições partiram carece de ritmo, de batimentos. Além disso, o ritmo estabiliza a psique”. Esses rituais, repetidos “são polos de descanso que estabilizam a vida. As repetições os diferenciam”. Portanto, os rituais “fazem do estar-no-mundo um ser-em-casa. Eles são no tempo o que as coisas são no espaço. Eles estabilizam a vida estruturando o tempo. Eles são arquiteturas de tempo. Desse modo, tornam o tempo habitável, até transitável, como uma casa”. Somente podemos habitar ou tornar casa, aquilo que conhecemos. Por isso é necessário domesticar, tornar-se casa, fazer comum. Assim, amigo é aquele que se faz casa e deixa-se ser casa do outro. Nos acostumamos a tê-lo ao lado para que façamos do mundo inóspito, o nosso lar. São as pessoas que amamos, as coisas queridas, os lugares especiais, que possuem valor para nós, que fazem do mundo, casa. A repetição, a visita, a observação, a conversa, esse hábitos corriqueiros, que fazem de uma rua qualquer, a nossa rua, o nosso bairro, os nossos amigos, nesse processo, tornam-se nossos e de mais ninguém.

Diz o menino, depois das palavras da raposa e ao ver um jardim repleto de rosas, “vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativaste ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu a tornei minha amiga. Agora ela é única no mundo”.

A raposa era somente uma raposa, semelhante a rosa que era, apenas, mais uma, porém: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante”, por isso “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

O tempo dedicado à rosa, fez daquela rosa, antigamente comum — A Rosa. Ela se tornou especial dentre todas as outras. Cativar alguém leva tempo e carrega consigo a responsabilidade para com ela. Mas, no momento que estamos, isso não é o bastante. Não se pode ter — A Rosa, mas milhares de rosas, nem — O Amigo, mas vários amigos, para que haja uma coleção de encontros efêmeros. Diz Han, “O tempo de hoje carece de uma estrutura sólida. Não é uma casa, mas uma torrente. Nada a detém. O tempo da pressa não é habitável”.

Dizem que “lar é onde o coração está” e isso é nada além do que a verdade. O coração somente pode habitar onde um lar se formou. O lar só pode ser criado, quando o coração se encontra domesticado e cativado, quando isso não ocorre, somente resta torrente e desordem.

Criar o lar para o coração é, de maneira nenhuma, simples. Os laços criados são dolorosos e prazerosos. Isso fica explícito na última conversa entre a Raposa e o Príncipe:

- Ah! Eu vou chorar.
-A culpa é tua -disse o principezinho. -Eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse…
-Quis -disse a raposa.
-Mas tu vais chorar! -disse ele.
-Vou — disse a raposa.
-Então não terás ganho nada!
-Terei, sim - disse a raposa - por causa da cor do trigo…

A dor da despedida, além da tristeza, traria, também, uma alegria especial. O trigo, que antes não significava nada para a raposa, de agora em diante, teria um simbolismo que não havia. Pois, toda vez que ela visse o trigo, lembraria do menino e seria feliz. Comenta Rubem Alves que esta parábola demonstra a capacidade humana para transformar as coisas “de entidades brutas e vazias, em portadoras de sentido, de tal maneira que elas passem a fazer parte do mundo humano, como se fossem extensões de nós mesmos”. Sendo assim, “o trigo, dantes sem sentido, passou a carregar em si uma ausência, que fazia a raposa sorrir”.

O mundo foi transformado pela amizade entre a raposa e o Pequeno Príncipe. Eles agora habitam em um mundo de significado, tornaram a imensidão do mundo das coisas comuns em objetos especiais, quase mágicos. Isso que amizades e lugares, objetos queridos e conhecidos, nos proporcionam - sentir-se aconchegado no mundo de rosas, raposas e meninos, que não tinham sentido, mas que agora nos são familiares. O segredo para isso, é simples, diz a raposa: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.”

BIBLIOGRAFIA:

HAN, Byung-Chul. No-cosas. Taurus. Barcelona, 2021. (Edição do Kindle)

ALVES, Rubem. O que é religião?. Editora Loyola. São Paulo, 2006.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. (EBOOK)

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Thiago Holanda Dantas
vanitas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2