Caixa de Empatia de Wilbur Mercer

Da mente de Philip K. Dick para o mundo real

Diego
Ver mais… Textão!
6 min readAug 13, 2017

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A ficção científica, por vezes, nos apresenta uma visão de futuro fazendo uma extrapolação da tecnologia do presente. Não raro, a realidade alcança ou até mesmo ultrapassa tais “previsões”, podemos citar o emblemático exemplo do satélite geoestacionário, imaginado por Arthur C. Clarke. Em contraposição, Philip K. Dick costuma dar maior ênfase no aspecto psicológico e social em detrimento do preciosismo técnico, este último mais presente nas obras de Ficção Científica Hard.

Na resenha do livro O Caçador de Andróides / Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? de Philip K. Dick (adaptado no cinema com o nome de Blade Runner), mencionei bastante o termo empatia e deixei uma pista sobre este post [que demorou um “pouquinho” para sair]. No livro, existe um dispositivo chamado Caixa de Empatia e irei discorrer como, mais uma vez, a ficção se materializa em nosso mundo.

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Estava ouvindo um episódio podcast de Duncan Trussel (um cara que ficou, realmente, fascinado pela realidade virtual), ele fala que sempre sugeriu que fizessem um “Simulador de Crucificação”, para que as pessoas tenham a “experiência” que Jesus teve ao ser crucificado. Joe Rogan (que possui um ótimo podcast) comenta que seria legal, além dos óculos de realidade virtual, um “traje tátil” para melhorar a experiência. Você pode conferir este trecho do episódio aqui.

Na hora em que ouvi isso lembrei-me de Wilbur Mercer e a Caixa de Empatia, do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (Philip K. Dick). Repetirei a seguir um trecho de minha resenha:

Com certeza, o aparelho mais estranho mostrado no livro é a Caixa de Empatia, proveniente de uma religião denominada Mercerismo. Seu usuário a liga, segura nos “punhos” da tal caixa e compartilha diversas sensações com outros usuários que, porventura, estejam usando a caixa de empatia no mesmo momento. Wilbur Mercer está para o Mercerismo como Jesus Cristo para o Cristianismo. No momento que as pessoas fazem a “fusão” com Mercer, o visualizam subindo uma colina e depois sendo apedrejado, geralmente os usuários da caixa de empatia sentem uma destas pedradas.

Fiquei pensando se algum fã não estaria tentando fazer algo semelhante…

Ao pesquisar, não só a resposta foi positiva, como já existem três protótipos (de diferentes criadores). E, veja só, o da imagem a seguir é exatamente o que mostrei na resenha do livro! Àquela época, pensei que se tratava apenas de um conceito não funcional. Você pode conferir o site do projeto aqui.

Caixa de Empatia do coletivo de arte IOCOSE, formado por Matteo Cremonesi, Filippo Cuttica, Davide Prati e Paolo Ruffino,

Este modelo consiste numa caixa que controla a modulação dos níveis de choque elétrico (semelhante aqueles “choquinhos” que tomamos nos músculos, em sessões de fisioterapia) com duas semi-esferas de metal dispostas em suas extremidades. Ao ligá-la, cada pessoa segura uma semi-esfera com uma mão e depois ambos seguram as mãos que estão livres. Pode ser usada por mais de duas pessoas, geralmente uma reação em cadeia, no melhor estilo Chaves, mas numa voltagem menor (assim espero!).

Como disse, existem três protótipos, o mostrado acima é o segundo deles, o primeiro foi criado por Sophia Brueckner. O aparelho, inclusive, faz parte de sua tese para o MIT (que pode ser lida aqui). Pelo que pude entender, funciona da seguinte maneira: As caixas de empatia ficam em locais diferentes e utilizam conexão Wi-Fi (ou 3G/4G). Quando uma pessoa segura os dois cilindros metálicos, as outras caixas que não estão em uso começam a emitir uma luz branca.

Caixa de Empatia de Sophia Brueckner

Se uma segunda pessoa ao ver a “notificação” e também segurar nos cilindros de sua caixa de empatia, começará a sentir um calor, literalmente: os cilindros começarão a aquecer e “pulsar”. Desta forma, a pessoa que estiver sozinha em uma sala de testes (ou em sua casa) saberá que outra também está usando a caixa de empatia naquele momento.

Pelo pouco que li, Sophia fez uma associação entre afeto e calor, principalmente com base na literatura, que utiliza palavras como calor para simbolizar este sentimento.

O terceiro protótipo (feito por alguém identificado apenas como ishanchatterjee1, que também é do MIT) traz um design não muito agradável. Por outro lado, faz uso de recursos interessantes como o Oculus Rift (um dos pioneiros da atual tecnologia de realidade virtual, que teve a mão de John Carmack, co-criador do jogo Doom) e também pelo uso de solenoide, que simula o impacto da pedrada! O post que explica o projeto contém desde inspirações que levaram à criação do aparelho até sua documentação técnica (para aqueles que quiserem criar sua própria Caixa de Empatia).

Caixa de Empatia de ishanchatterjee1

Segue a tradução livre de um trecho, no qual os criadores sugerem aplicações para a caixa de empatia, como nos casos de soldados atormentados que foram alvejados numa guerra e até mesmo os refugiados da Síria.

[…] Não precisamos olhar para o futuro da ficção científica para poder perceber o alcance deste dispositivo. No mundo de hoje, há uma série de situações em que a empatia, engendrada através de um dispositivo como este, pode ajudar a fazer mudanças sociais. Dado que os haptics [“sensores de tato”, “simulação de tato”] são projetados para impulsos, não é difícil prever que este dispositivo seja usado para entregar visões de um campo de batalha, como a perspectiva de um soldado atormentado apanhado no meio de um tiroteio. Um exemplo particularmente oportuno engloba empatia para os refugiados das áreas destruídas pela guerra, como a Síria. Ao visualizar e sentir a experiência de um civil deslocado em uma área de bombardeio, por exemplo, muitos se sentiriam mais inclinados a ajudar com a situação do refugiado […]

Depois de ver os detalhes dos três protótipos, cheguei a conclusão de que eles se complementam. Portanto não acho que exista um que seja melhor que os outros, cada qual traz especificidades interessantes.

Enquanto um proporciona uma experiência mais física e que pode ser compartilhada por pessoas em um mesmo ambiente, outro traz a possibilidade de ter uma experiência imersiva em realidade virtual, para tentar experienciar algo distante de nossa realidade, como a situação de guerra, por exemplo.

A versão de Sophia Brueckner, ao meu ver, se aproxima mais da ideia do livro e sua tese parece ser bem interessante. Confesso que queria fazer sua leitura (na íntegra) e apresentar aqui algo mais aprofundado mas, passado um ano, desde o meu primeiro rascunho, resolvi publicar a postagem do jeito como está mesmo (no futuro, posso fazer novo post ou uma atualização deste).

De qualquer forma, vale destacar que sua tese aborda vários aspectos além dos tecnológicos. Em sua conclusão, faz uma exposição que nos leva a refletir (segue trecho com tradução livre):

[…] Muitas pessoas experimentam que pode ser mais solitário viver em uma cidade cheia de gente do que estar em um deserto sozinho. Estes sentimentos de solidão surgem de poder ver o potencial de conexão que ainda não se realiza.

Aproveitando o ensejo, antes de finalizar, trago uma passagem do livro O Sol é para todos (Harper Lee), no qual o advogado Atticus Finch explica à sua filha, Scout, o conceito de empatia:

─ Em primeiro lugar, Scout ─ ele disse ─, se aprender um truque simples, vai se relacionar melhor com todo o tipo de gente. Você só consegue entender uma pessoa de verdade quando vê as coisas do ponto de vista dela.
─ É?
─ Precisa se colocar no lugar dela e dar umas voltas.

Acho que as citações falam por si. Nos cabe agora decidir se vale a pena fazer um exercício de empatia com as pessoas ao nosso redor (as que gostamos e as que não gostamos) e se devemos ou não mudar nossas atitudes em determinadas situações.

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