No fundo do poço

Ces Michelin
Vernos
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10 min readApr 20, 2020

Na política, o tempo é o maior juiz. Mas não custava nada ter um pouco de juízo agora.

Nota ao leitor

Deixa eu te contar uma coisa: esse texto é uma expressão pessoal e contém críticas a algumas figuras públicas, dentre elas o Presidente da República do Brasil. Foi escrito de forma bem-humorada, meio ácida e descontraída, mas tocando em assuntos bem sérios, sustentado por matérias oficiais vinculadas na imprensa nacional e internacional. Se você é sensível a esse tipo de conteúdo ou extremamente militante da presidência a ponto de se sentir desconfortável ao receber outros pontos de vista, fica o alerta para que apenas siga em frente se sentir motivação em fazê-lo e consciente do conteúdo.

Digo isso em respeito a você e a liberdade de expressão.

Há um mundo imaginário sendo vivido por alguns hoje em dia.

Sabe, eu já confiei no Fernando, no Luís, no Geraldo, no José, no Eduardo e no João. Nunca acreditei no Jair. A real é que a gente não tem muita escolha, cada vez tem menos opção. Mas no Jair eu nunca consegui confiar.

Eu não acho que ele seja má pessoa. A gente bateria uma bola juntos talvez, e ele deve ser um quarto-zagueiro firme, daqueles que não perde viagem. Já eu prefiro me posicionar mais centralizado, distribuindo as jogadas e pensando o jogo. Jair vai dizer que é porque ali se corre menos e eu não tenho lá aquele histórico de atleta. Ele tá meio certo nessa.

Aliás, com essa quarentena, vão os reais e chegam os quilos. Não é fácil ficar em casa. E olhe que eu sou da parte privilegiada da sociedade. Espelhando “O Poço”, mais uma ótima obra espanhola da Netflix, digamos que eu tô entre os andares 30 e 40. Tá muito bom.

Para quem não viu, O Poço é uma fábula onde uma plataforma desce como num poço de elevador por centenas de andares. Do primeiro andar, nesse caso na cobertura, a plataforma parte farta em comida. E nela consta tudo que poderá ser consumido naquele dia, por todas as duplas que habitam cada andar. A plataforma vai descendo, pára dois minutos por andar, as pessoas vão comendo e deixando o que sobra para os outros abaixo. A sociedade está retratada ali, há comida para todos, mas...

Cena do filme O Poço, mostra uma mulher sobre um plataforma com comida, vista de cima.
Cena do filme O Poço

Hoje, vivemos a transição para um mundo novo e incerto, ainda lidando com problemas antigos e bem conhecidos. Pessoas já morriam em hospitais mau preparados, hoje morrem mais. Pessoas já passavam fome por conta da desigualdade, hoje passam mais. Pessoas já tinham pouca educação e conhecimento por diversos motivos, hoje… Pois é.

Por outro lado, renovo minha esperança quando vejo o esforço de muita gente em se solidarizar com o momento de crise e com os que passam maiores apuros. Empresas e indivíduos nos dando mostras de que podemos ser melhores num futuro breve, fazendo mais como sociedade. Aliás, o próprio Jair também fez umas coisas muito boas para a Economia. O problema dele é outro…

O personagem principal de “O Poço” foi inspirado em Dom Quixote, herói da literatura espanhola criado por Miguel de Cervantes, segundo livro mais popular da história atrás apenas da bíblia… Fidalgo enlouquecido por sua biblioteca com livros de aventuras cavalariças, Dom Quixote é movido por seus devaneios a transformar hospedarias em castelos, travar batalhas imaginárias contra moinhos de vento que ele vê como gigantes, e amar uma mulher que não existe: Dulcineia. Ele se aventura ao lado de seu escudeiro Sancho-Pança pelo interior da Espanha. Um louco fazendo loucuras.

Aliás, antes de continuar, deixa eu chamar o Jair aqui, porque estou notando umas semelhanças quixotescas interessantes e acho que vale dividir com ele também:

_Jair! Chega mais, por favor. Mas não tão perto. Isolamento, lembra? Angela já nos falou como tem que ser lá da Alemanha. — vamos ver se ele vem.

E eu sei que você já começou a conjecturar quais as semelhanças que encontrei e sim, uma delas é que eu tô virando o próprio Sancho Pança nesse isolamento. Mas você também não deveria se apegar aos padrões estéticos, pode ser? Outra é que Dom Quixote não era uma pessoa ruim, mas em sua luta imaginária, cego pelos seus devaneios, acabou totalmente envolvido em sua loucura. Esse tipo de comportamento é chamado de quixotesco e, sem fazer juízos de valor, de bem e mal, acho que há um mundo imaginário sendo vivido por alguns hoje em dia.

Ivan Massagué (Goreng)

Vou te apresentar um inimigo que você não conhece, mas que agora você vai enfrentar até as últimas consequências. E eu sou sua chance de vencer.

Quando todos fomos afetados de alguma forma pela pandemia de coronavírus no início do ano, os comportamentos não foram iguais. O que nos une é um sentimento de medo, aflição, perda e luto; e alguns encaram o desafio na realidade com a qual ele se apresenta, se apoiando num histórico recente, em especialistas, dados, ciência, mídia e outros recursos que nos ajudem a encarar a mudança. Outros negam a existência da própria pandemia, dominados pelo medo não querem mudar, se apegando a um passado que já morreu. Esse é um momento sem precedentes, sem comparação, sem referência. Liderar nesse momento deve ser extremamente angustiante.

Talvez o Jair esteja tão perdido quanto o guerreiro de La Mancha, limitado pelas suas próprias fronteiras cognitivas, alimentando inimigos imaginários, ele atua mais no seu mundo fantástico do que no mundo real. Ele nega e se apega desesperado a frases e símbolos de salvação, tal qual em “O Poço”, cujo símbolo que resolve todo o enredo é a…

_Cloroquina! Já determinei ao exército a produção em massa de cloroquina. — o Jair chegou aqui. E percebe como ele é afoito? Como se apega a alguns termos com uma fé cega em soluções milagrosas, independente da ciência por trás delas? Ele está assim desde o grafeno, lembra? Não? É, parece que ninguém mais lembra. Nem ele.

São muitos os mitos com os quais sempre lidamos. E esse jeito Messias de ser não me convence muito não. Jair é um cara bem, mas bem comum mesmo. E segue a risca a velha máxima do populista: vou te apresentar um inimigo que você não conhece, mas que agora você vai enfrentar até as últimas consequências. E eu sou sua chance de vencer.

Se formos listar os inimigos enfrentados por Jair a lista envolve os corruptos, o PT, o comunismo, a imprensa, os chineses, seu ministro da saúde, a conspiração do coronavírus, os governadores e prefeitos, a quarentena, a Câmara… Não nego que hajam muitas forças se enfrentando constantemente no meio político, cada qual com formas mesquinhas e ardilosas, mas esse jogo de nós contra eles é fundamental para o populista; e um desastre para o povo.

Então, se você o idolatra, eu te confesso, isso me causa muita estranheza. Porque eu venho pensando em adotar dois gatos, mas nenhum político de estimação. Do Fernando ao João muitos me decepcionaram; o Eduardo não porque derrubaram o avião dele antes de ele conseguir manchar sua imagem comigo. Mas, cá entre nós, essa história de ídolo político já nos trouxe muita encrenca, corrupção, divisão e gente “fula”.

Eu acho uma tremenda bobagem idolatrar políticos. Na verdade, ando pensando que ter um ídolo de qualquer tipo é pura preguiça. Ao invés de estudar, criticar e destacar aquilo que eu gosto em alguém, digo que gosto de alguém e pronto: rótulos. Das pessoas que me motivam, eu quero admirar suas melhores partes, seus melhores momentos, seu ápice e não suas falhas cotidianas. Ainda que dê um pouco mais de trabalho destacar esses momentos, faz mais sentido pra mim.

Assim como o próprio Jair idolatra o Donald, amigo do Mickey, digo, da terra do Mickey; algumas pessoas criaram o mito Jair, o Messias, Salvador da Pátria. Ou será que ele mesmo criou?

_Pois eu já determinei aos meus ministros, escrevendo com a minha caneta, no meu gabinete, com fé em Deus, determinei que estejam determinados em salvar a pátria em meu nome. — às vezes o Jair é bem determinista quando não é terra planista.

Tendo tanto poder para determinar nas mãos, estava na hora de parar de jogar gasolina na fogueira, respeitar os seus técnicos e olhar os exemplos de fora para combater a pandemia; seja da Angela, do Donald ou mesmo da terra do Quixote. O país vive uma dicotomia danosa que em nada colabora para os avanços necessários. Para vencer um vírus então, nem se fala. Dois lados, tal qual Montéquios e Capuletos, ou como os Mezenga e os Berdinazzi, daquela novela clássica da emissora que o Jair não gosta. Estamos focando na picuinha e menosprezando a gripezinha que já é o pior evento no mundo desde a segunda-guerra.

O presidente está cada vez mais isolado — Foto: Ces Michelin

Nada é mais oportuno e tentador para um político do que uma boa crise.

Pelo mundo afora, caricaturas e citações sobre o Jair só aumentam. Sua imagem é sempre atrelada a alguma carência intelectual, brutalidade de alguém com pouco recurso emocional e inapto a exercer seu cargo. Ele parece cada vez mais isolado em sua bravata endoidecida.

Todavia atenção, não se engane, Jair não é bobo. E nesse tema eu não consigo compará-lo ao Dom Quixote. O espanhol era ingênuo e louco. O brasileiro ateia fogo aqui e ali, conscientemente, porque sabe bem que tem um grupo de pessoas que cegamente repercutem tudo o que ele faz e fala. Ele tem uma base, todo populista tem. E ele se protege atrás dessa massa estranha, enquanto os guia como se fossem uma seita da qual ele é o guru. Para onde você está levando essas pessoas, Jair?

Não há nada mais oportuno a um político do que uma boa crise. Lembre-se disso, pois vale para qualquer político e qualquer crise. Eles vão incutir o medo e te apresentar um inimigo, ora fabricado, ora oportuno. A partir daí vão oferecer a solução para vencer o inimigo e que necessariamente dependerá deles mesmos. Ou seja, quando te convocarem a combater o inimigo, tenha certeza de que não são moinhos de vento.

Os próximos dias, meses, anos são completamente imprevisíveis e definirão o destino da nossa crise atual. Vamos ouvir falar do vírus chinês, do isolamento vertical, isolamento horizontal, fraudes, crises nas favelas, picos de ansiedade, testes, medidas preventivas, medidas restritivas, AI5, carreatas, achata a curva, #globolixo, contêineres frigoríficos, arrependimentos, demissões, retratações, STF e por aí vai. A história está sendo escrita agora e o que vem pela frente vai marcar a nossa geração para sempre. O tempo é o maior juiz, mas não custava nada ter um pouco de juízo agora.

E aí Jair, você tá pronto pro desafio? Jair? Jair? — droga, ele já saiu de novo para tocar seu rebanho.

Flagra do spray, umas das formas de contágio da Covid-19

Nota ao leitor (2):

Esta é uma crônica com inserções ficcionais. Mas a realidade é ainda mais dura e lamentável.

Nos meses de março e abril de 2020, Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, adotou uma postura negacionista sobre a pandemia de coronavírus covid-19, que até o dia de hoje, dezenove de abril, já contaminara mais de 2 milhões de pessoas em todo o mundo, vitimando mais de 150 mil. Destas, quase 38.654 pessoas foram infectadas no Brasil, causando 2.462 mortes.

Levando-se em conta que o Brasil praticamente não faz testes ainda, o quadro de infectados tende a ser muito maior do que o observado até agora. Entretanto, ignorando especialistas e orientações amplamente divulgadas em todo o planeta, Jair segue promovendo aglomerações públicas e pleiteando medidas de abertura do comércio, mesmo sem ter dados que garantam a viabilidade dessas medidas.

Numa ação mais recente, nesse mesmo dia dezenove de abril, Jair Bolsonaro participou de uma manifestação pública com dezenas de pessoas. Dentre os pleitos da manifestação: abertura do comércio, dissolução do congresso, afronta ao Superior Tribunal Federal e o retorno da Ditadura (AI-5).

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Ces Michelin
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Escrevo textos e ideias soltas, despretensiosas. Quem sabe, podem fazer sentido para ti em algum momento.