Sessenta

Ces Michelin
Vernos
Published in
3 min readMay 16, 2020

Para os segundos um minuto, para os minutos uma hora. Sessenta dias que às vezes parecem ser o mesmo dia, como se o Sol e a Lua coexistissem no céu agora.

Ou como naquele filme do Bill Murray, Feitiço do Tempo, em que um repórter vai cobrir o começo do inverno na pequena cidade de Punxsutawney, e se vê preso bizarramente no mesmíssimo dia repetidas vezes: o dia da marmota.

A gente acorda e logo procura a primeira tela pra se enquadrar. Vida limitada em frames e pixels, sem linha do horizonte e sem profundidade. Na tela somos flat, slim, fit… ainda que nossos corpos reflitam promessas não cumpridas de exercícios e alimentação saudável.

E no embate entre as preocupações sinceras e as comunicações rasas: falta o toque, o cheiro e a presença das coisas e das pessoas. Falta o olho no olho, preservar a zona de conforto, perceber um semblante alegre ou preocupado de alguém. Falta o sutil, o corriqueiro, o som de fundo com conversas dos outros, esperar as pessoas chegarem. Falta o sorriso sem alarde e quebrar o gelo num abraço.

Sessenta dias que não abraço meus pais, tios e avó; afinal sessenta é a idade do risco. Em algumas casas, as paredes devem estar riscadas, ora pelas crianças entediadas, ora pelos adultos contando os dias distantes dos seus.

Saudade porém, não se contabiliza em dias. Ela é o que preenche os espaços vazios. E quantos prédios vazios agora não voltarão a ver as mesmas pessoas, pois os negócios não serão mais os mesmos depois disso tudo. Histórias abruptamente chegaram ao fim sem que a gente nem se desse conta.

Faz sessenta dias que fomos pra casa, mas os negacionistas não aprenderam nada. Cozinhando em banho maria uma panela cheia de óleo pegando fogo, fazem esses dias serem surreais na medida que são tristes. Distorcem a realidade, desfazem a lógica, debocham da razão, trocam ministros e farpas no momento que deveria haver coesão. E o longo dia de sessenta dias acumula problemas, tal qual a pia acumula louça e o cesto acumula roupas.

Ir pra rua é operação de guerra. Há uma arma biológica no ar, invisível, mas está lá. Põe a máscara, não toca o rosto, lava as mãos, não fica perto. Álcool sessenta não serve, só de setenta pra cima. E a curva não achata, nem todo mundo se ligou no problema. Enquanto estamos expostos a uma seleção natural forçada, o próximo passo em prol de salvar mais vidas é igualmente a força: lockdown.

E quem se importa de verdade, está escolhendo até o que assistir. Eu lembro da Natty chorando assistindo uma das primeiras lives do Átila Iamarino há quase sessenta dias. O apocalipse que ele previu, que bom, não se concretizou. Algo certo foi feito nesse monte de coisa errada, e a gente precisa ser seletivo mesmo, para não perder o senso.

Faz sessenta dias que as mentes ansiosas disparam com novos gatilhos, se controlam, descolam da realidade e retornam; fazem as malas para ir embora e se tocam que o seu mundo todo agora cabe em casa. E eu ainda sou privilegiado e estou há sessenta dias com minha parceira ao meu lado. Mas, conforme as palavras dela: esse é o tempo de nos reencontrarmos com nós mesmos.

E eu não tenho nada a lhe propor que seja mais otimista do que isso. Tal qual pro Bill Murray, o feitiço do tempo só quebrou quando ele se acertou, se conheceu, mudou e evoluiu. Melhorando uma parte para melhorar o todo.

Quem sabe a gente possa tentar algo assim, cuidando da gente, da casa, uns dos outros. E as coisas possam entrar nos eixos de novo, de um jeito novo pra todo mundo.

--

--

Ces Michelin
Vernos
Editor for

Escrevo textos e ideias soltas, despretensiosas. Quem sabe, podem fazer sentido para ti em algum momento.